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sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

de Macacú ao Irajá : a trajetória de um Saci





Fiquei enrolado com outra pesquisa, e não pude concluir esse texto como queria: acabei perdendo dois arquivos importantes que continham informações sobre a propriedade dos Guinle em Macacu, e sobre trabalho escravo na década de 10. Paciência! mas vou adiantar alguns dados : era pretinho, desengonçado e com as pernas arqueadas.

 Nasceu em Cachoeiras de Macacú em 20 de agosto de 1922. Era neto de escravos e seu pai, Etelvino Anselmo , lavrador, trabalhou muitos anos na propriedade dos Guinle, no Subaio, 3º distrito. Com um ano de idade foi morar no Rio de Janeiro, no Catete, e depois em Irajá, sendo que seu pai continuou a trabalhar para o magnata Eduardo Guinle, no Palácio em Laranjeiras.

Chamava-se Manoel Anselmo da Silva.

Trata-se  da figura emblemática de MANECO, do América Futebol Clube.

Desde menino, acostumou-se a ir com o pai ao estádio de Laranjeiras, Gávea e São Januário, onde tinha como seu ídolo maior, Leonidas da Silva, o Diamante Negro.

Ajudava o pai, entregando jornais na casa dos Guinle. Embora entregasse os jornais diariamente nunca viu mais gordo o tal de Eduardo Guinle, tamanha era a distância social  que o separava. Cursou até a quarta série no Externato São José e em suas horas vagas, costumava ser visto nas peladas da rua Gago Coutinho e arredores.

 Iniciou sua carreira aos 15 anos no Futurista F.C., depois no  Rio D'ouro e finalmente no Irajá Atlético Clube, clubes de várzea do subúrbio carioca, certame futebolístico conhecido como “esporte menor”.  

Foi quando, na finalíssima entre o Irajá e o Manufatura, Maneco marcou dois gols decisivos, ambos  “ de bicicleta ”. Visto pelo olheiro do América do Rio,  foi levado  para treinar em na equipe de base de Campos Sales. Sua estreia como aspirante, em 1942, aconteceu em uma preliminar, no estádio de General Severiano. O América foi o único clube que defendeu como profissional, sendo até hoje seu 3º maior artilheiro, com 187 gols marcados, ficando atrás apenas de Luisinho Lemos (311) e Edu Coimbra (212). Ficou conhecido como sendo o carrasco do Vasco da Gama, contra quem sempre fazia gols.
 
            
                 Maneco, o Carrasco dos vascaínos em seu 1º título como profissional - 1945

Possuidor de um drible picotado e com poderosa canhota, logo caiu nas graças da torcida. Seu primeiro gol marcado como profissional foi contra o goleiro Jurandir, do Flamengo.  Não tardou para que, espelhando-se em Leônidas fizesse um gol épico qual seu ídolo: o de bicicleta.
 
 

Formou  o célebre ataque do América conhecido como "tico-tico no fubá" formado por Chico, Maneco, Cesar, Lima e Jorginho. Era assim chamado o ataque que trocava linha de passes, por minutos consecutivos, num constante vai-vem. Este quinteto protagonizou a brilhante excursão do Mequinha pelos países andinos em 48, onde a equipe rubra retornou invicta, implacando 8 vitórias, sendo que Maneco marcou 6 dos 28 gols da equipe.
        Maneco agachado à direita, no Santos Dumont, com destino à Caracas - 1948
 
                                  3 goals de Maneco
com direito a música no Fantástico
“ Saudades da minha infância querida
Lindos prazeres felizes que tive na vida
Saudade do saudoso Lamartine
Que exaltava nosso time com alegria
Hei de torcer até morrer...
Assim nosso poeta dizia
                          E vamos no embalo da Águia
                          Voa, América, vem cá, vem cá
                          Saudades de Carola e Danilo
                          Futebol em grande estilo
        ...  E do Saci do Irajá
                           Daquele Tico-Tico no Fubá ...”
( Monarco – sambista,compositor e americano fanático)
 
 
Em 1947 , aos 25 anos, foi convocado para atuar na Seleção Carioca, da FMF, formando ataque com Heleno de Freitas e Ademir Menezes. Nos dois jogos decisivos contra os paulistas MANECO , marcou 5 gols na meta do famoso Oberdan, sendo que no segundo jogo, em São Januário, decidiu a partida sozinho marcando os três gols da contenda , sagrando-se tricampão nacional. Por esta atuação endiabrada, recebeu da imprensa o apelido de ' Saci do Irajá ', além do reconhecimento por parte do próprio Domingos da Guia ,seu marcador  neste jogo:
" O "molequinho" é vivo como azougue e liso como uma enguia.  É dificilimo de ser marcado, o que considero que somente poderia ser conseguido por outro elemento com suas mesmas caracteristicas. E isto é, ainda, mais dificil. (Domingos da Guia)”
 

                 poderoso ataque da Seleção Carioca : Amorim, Maneco, Heleno, Ademir e Chico
                Indagado sobre os elogios recebidos da crônica esportiva  e em geral, Maneco humildemente declarou:
“ ...para lhe ser franco, o que mais me emocionou, foi o de Domingos. Este sim, guardarei eternamente dentro do meu coração. ”
                Nas ruas era aclamado pelo povo. Agora, todos sabiam  que existia um bairro chamado Irajá, de onde surgira o Saci Pererê – o de Irajá :
 
 
“... A multidão invadiu o campo e carregou Maneco em triunfo. Carregou como pôde, cada torcedor querendo segurar em alguma coisa de Maneco. Foi preciso que a polícia viese, e tirasse Maneco das mãos da multidão e o conduzisse como um preso perigoso ou como uma figura ilustre, até o vestiário. ( Mário Filho ) ”
Maneco, neste mesmo ano foi convocado pela C.B.D. para disputar a Copa Rio Branco, contra o Uruguai, mas Maneco não conseguiu manter a sua melhor performance.
Da noite para o dia, seu passe foi hipervalorizado, chegando à astronômica cifra de 800 mil cruzeiros, contrariando mesmo a legislação do passe. Grandes clubes tinham interesse em seu passe, como Vasco, Flamengo e Coríntians, mas esbarravam nas pretensões do América, que não pretendia ver a prata da casa brilhando em outra agremiação.
 
 
Em 1948, Maneco era o jogador mais bem pago pelo América :  5 mil cruzeiros de luvas e salários de 800, mas ainda assim muito inferior aos de Heleno, Ademir, Jair, Jordan e outros dos grandes clubes cariocas.
Apesar desta fama adquirida meteoricamente, Maneco resistia ao glamour e consumismo, característicos  dos grandes ídolos. Continuava em sua simplicidade e modéstia optando em continuar vivendo no subúrbio de Irajá e mantinha a firme posição de continuar a defender a  camisa rubra do seu clube de coração, por quem torcia desde os 11 anos de idade.
 
 a primeira casinha em que habitaram no Irajá, Maneco ao lado do pai e irmãos
Sua paixão pelo América era maior do que qualquer interesse financeiro.
Podemos até afirmar que, caso Maneco tivesse se transferido para um dos grandes clubes do Rio ou de São Paulo, poderia ter-se firmado como grande estrela do futebol nacional, como o foi Garrincha, pois guardava  similaridade no estilo de jogo: embora canhoto notabilizou-se na posição do 7 clássico, no drible picotado, nas diabruras dentro de campo que os consagraram, além do carisma e desprendimento, como o vemos nestes comentários :
“ ... No caso, a felicidade do povo seria Maneco, um negrinho de Irajá, que nada tem a ver com a mula manca. O negrinho encheu o gramado verde de São Januário, como um autêntico Saci Pererê. Não é que ele trouxesse alguma novidade ao football, não é que superasse , em classe, aos outros ases, mas é que Maneco nos momentos de sua ação não parecia gente desta nossa terra, mas parecia autêntico demônio em exibição de artimanhas. O velho Domingos (da Guia), sofreu tudo da malignidade do Saci de fôlego de sete gatos.( José Lins do Rêgo )”
“... Maneco cresceu então na admiração da torcida. Era o ponto de convergência das esperanças da multidão. Na tribuna de honra os paredros empalideciam a cada ataque carioca, fazendo juras que o diabo de bronze empatasse o escore. E Maneco brilhava. Brilhava na noite escura, parecia um diamante negro no engaste da sua camisa branca. Era o novo astro no seu batismo de glória, com o seu nome berrado por milhares de gargantas. Brilhava nas suas fintas, nas suas arremetidas que prometiam goals, no que fazia e no que poderia ter feito se os companheiros não o atrapalhassem no afã de colaborar m tanto trabalho. Nascia o novo astro do football carioca, o gênio de Irajá. ( Ricardo Serran ) ”
      Durante o ano de 1947, em função daquele baile contra os paulistas, Maneco ocupou as primeiras páginas de todos os veículos de imprensa, sendo considerado o melhor jogador do ano de 1947. Foi capa de jornal várias vezes, incluindo o abalizado periódico Sport Ilustrado.
Era uma figura carismática , tido como chefe de família exemplar, amigo das crianças. Mas ainda assim, parte da imprensa questionava a queda de seu rendimento que se verificou nos anos seguintes, não poupando-lhe em críticas em função de um suposto gosto seu pela fama. Não faltaram também pinceladas de preconceito, explícitos ou subliminarmente, aos quais Maneco tirava de letra.
O adjetivo criolinho, ou crioulinho desajeitado sempre era adicionado ao apelido de Saci do Irajá. Até mesmo, de maneira ingênua, seus fãs contribuíam para a manutenção desta tipificação. Dois registros jornalísticos  atestam exemplarmente essa situação:
- no jantar de comemoração do tricampeonato, promovido pela FMF – Federação Metropolitana de Futebol, oi servido como sobremesa aos jogadores campeões, sorvete de creme, com a justificativa de que seria uma homenagem a Maneco, o herói do título, por ser este um “ preto de alma branca”.
 
 
- o outro registro, em um concurso de fotos e caricaturas promovido pelo Sport Ilustrado, um fã seu o caricaturou à imagem e semelhança de um macaco.
 
 
                Mas isto não o abalava. Embora de origem rural e criação no subúrbio, Maneco tinha bom gosto. E não faltava em sua casa a vitrola, adorava cinema e lia clássicos. Certa vez, em 1950, desabafou com ironia e elegância àqueles que dele faziam desdém por sua côr e condição de suburbano :
  ... Estou quase ouvindo “o torcedor” de outros clubes, dos outros clubes e do América, me chamando de “crioulinho besta” toda vez que faço uma macaquice em campo (refiro-me às jogadas mais enfeitadas). Claro, o “crioulinho besta” dito com simpatia, quase carinhosamente. Depois  o “torcedor”  vai para casa e se esquece de mim ou, pelo menos, só se lembra de mim como craque. De certo modo nem me conhece. Ignora , por exemplo, o meu nome: Manoel Anselmo da Silva, às suas ordens. Nem sabe que tenho bom gosto. Artista, apreciem só : Ingrid Bergman é minha preferida . Nem sabe que sou francamente por coisas finas. Com menos de duzentos cruzeiros não compro uma camisa. Pretendo assim mostrar quem sou. Sei ler e não me passo por qualquer leitura. “Alzira, a morta viva”, pó hipótese, não me interessa. Quero coisa apresentável. Algo que a crítica considere alta literatura. Não sou sofisticado. Copacabana é bonita, mas não me interessa, sendo de longe em longe, para um passeio. Em casa , no quintal, cultivo algumas plantas, e tenho devoção por uma, a Espada de São Jorge. Acreditem: não sou um tipo egoísta. Também penso nos outros. Já tive até ideia de ir falar com o prefeito, para ver o que se pode fazer por Irajá. ”
                Dizia-se fã de Charles Chaplin (Carlitos) e de Oscarito. Certa vez saiu-se com esta "tirada" ao ser perguntado por Máro Filho se Lana Turner era sua estrela preferida. Humorado e irônico respondeu na lata:
" ... Lana Turner pertence ao Ademir (Menezes). Deus me livre , meter-me na vida íntima dos outros."
 
um Saci internacional
 
                Neste mesmo ano, de 51, em entrevista com vários atletas falando sobre o futuro destes após o fim de suas carreiras, ao ser indagado sobre seus planos, Maneco revelou seu singelo sonho : adquirir uma casa para garantir abrigo na velhice de seu pai e comprar um automóvel de praça, para continuar trabalhando, pois com o que ganhou com o futebol  foi apenas o suficiente para garantir o sustento de pai e irmãos.
 
Sua carreira futebolística alternou altos e baixos.  Sua última partida oficial foi contra o Flamengo, na melhor de três pontos , em março de 1956, sua última chance de sagrar-se campeão estadual. Os rubro-negros venceram por 1 a 0, e Maneco adiou seu sonho de ver o seu América campeão. Aos 34 anos, já não era mais o endiabrado saci. Mas era sempre aproveitado , entrando na segunda etapa, alternando com Hélio, a posição de meia-esquerda. O destaque e os holofotes eram todos para o argentino Alarcon.
Seus títulos e campanhas mais expressivos foram o Torneio Relâmpago, em 1945 e o tricampeonato Nacional (Rio/SãoPaulo de 46 disputado em março de 47), além do vice-campeonato da Copa Rio Branco, em 48, pela C.B.D, perdido para o Uruguai, além da vitoriosa e invicta excursão pela América Latina em 48. Isto, é claro, sem contar com o seu primeiro título conquistado no Esporte Menor, pelo Irajá Atlético Clube , que o projetou ao profissonalismo.
Em 17 de abril encerrou sua carreira em um jogo no Recife, duelo de vice-campeões estaduais ,contra a forte equipe do Náutico.
 
Imediatamente foi aproveitado como treinador da equipe juvenil do América, pretes a conquistar um título, quando " a  prosperidade  "  lhe faltou.
Maneco era arrimo de mãe, e com seu salário de jogador cobria as despesas de toda a sua familia. Seu maior sonho era comprar uma casa para seu pai. E o fez, com o premio de 5.000 que recebeu da C.B.D. e os outros 5.000 de luvas pelo America. Adquiriu com esta quantia a entrada numa casa no Iraja financiada em cinco anos...
Por ironia do destino, a casa ficava localizada no numero 75 da Travessa da Prosperidade. Foi quando veio o fim de sua carreira, e como auxiliar técnico da equipe juvenil do América viu sua renda despencar, tornando-se difícil saldar as promissórias restantes para quitar em definitivo sua casa. Já faziam alguns anos que seus contratos como jogador estava depreciados em função de sua idade e desempenho. Ao encerrar  carreira , já era um veterano, com 34 anos.
Era 1956, e Maneco já havia amortizado mais de 50% do imóvel, porém acumulara 14 prestações em atraso. Sofreu calado, buscando  recorrer à diretoria do América , como último recurso, porém tardiamente. O Mequinha  se prontificou a ratear entre os beneméritos, o valor do débito . O presidente do América, Giullite Coutinho, tentou interceder no caso, propondo a quitação dos débitos com vistas a demover o proprietário de uma demanda judicial. No entanto, o proprietário , intransigente, recusou-se a receber as promissórias atrasadas, optando por dar continuidade à uma ação reintegração de posse  ajuizada na 17 Vara Cível .
Maneco foi visitado por dois oficiais de justiça, com a respectiva ordem de despejo, na manhã do dia 24 de maio. Pediu que os serventuários o acompanhassem até a casa do primo, que ficava próxima. Lá chegando, pediu ao primo um cálice de aguardente, pois estava muito nervoso. Em seguida foi ao banheiro, ali se trancando. Passados alguns minutos e estranhando sua demora e ouvindo gemidos,  os presentes  decidiram arrombar a porta deparando-se com Maneco, em estado agonizante. A humilhação de perder a casa com que tanto sonhara, o fez entrar em desespero, ingerindo veneno com a aguardente. Nada mais poderia ser feito. Maneco estava morto !
                Este seria seu último drible, ao ludibriar o primo e aos oficiais de justiça.
O comissário de polícia Carlos Brito, chegando ao local para a perícia, recolheu de suas vestes  este comovente bilhete :
“ ... Desculpe-me, pai querido, falhei ! Quis me recuperar mas não deixaram. Sinto que o meu gesto vai abalar muita gente, porém não aguento mais. Pai, há tantas noites que não durmo, Pra acabar meus sofrimentos ... Meus irmãos, perdão. Eu sei que vocês sentirão muito mais. Lembranças às crianças por mim. Desculpe Mário, primo. Quero morrer aqui pela tia Olga.
Para os outros: não quero luto e nem acabrunhamento por minha causa. Eu convivi com muita gente que sentirá meus passos, minhas gargalhadas, mas não tenham medo. Eu estarei presente em todas as festas. Beijos em todas as crianças. (a) – Maneco . ”
 
Até em seu derradeiro gesto, Maneco se manteve espirituoso se assumindo como o autêntico Saci e brincando com o seu próprio destino.
 
 
a última imagem do craque à vésperas da decisão com o Flamengo
11 de março 1956
 
                Uma semana passada, outro companheiro de equipe, o lateral ITIM, de 32, vivendo drama semelhante e influenciado pela drástica opção de Maneco, seguiu-lhe o exemplo, tirando a própria vida.
                Logo seguiu-se uma campanha dos beneméritos do América, capitaneada pela doação de 3 mil cruzeiros feita pelo jurista Sobral Pinto, até que em novembro de 1956, atingida a quantia necessária.
                Em 2 de outubro, o América F.C. passava às mãos de Seu Etelvino Anselmo - pai e inventariante do espólio de Maneco, um cheque do Banco Portugues, no valor de Cr$ 50.975,10, , relativo às 14 parcelas (de 1.577,00), consignando-o no juízo da 17ª Vara Cível.
                Cinquenta mil cruzeiros, o preço pago pela vida de um Saci.
“ Homem primata, capitalismo selvagem ...! ”
 
 
 
por Alberto Santos
 
 

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