( avós paternos )
uma história de preconceito racial no Brasil
Chamava-se Alberto Pereira dos Santos, meu avô
paterno, de quem herdei nome e
sobrenome. Pertencia ao ramo dos ‘Pereiras’ do Faro, Portugal. Trabalhou no
ramo da tipografia e panificação. Produziu uma numerosa prole: cinco filhas e
sete varões, frutos de 2 casamentos. Minhas tias inventaram certa história de
que minha avó tinha sangue azul e pertencia a uma nobre linhagem de Áustria.
Mentira ! Era apenas a ‘ama’ da casa, e com a viuvez precoce de meu avô... “já
que estais aqui, e para não perder o embalo, é tu mesma....”. Tornou-se sua
segunda esposa tendo com ele os oito últimos filhos. Esta inversão de papéis
era comum à época pois mulheres morriam em trabalho de parto e seus viúvos logo
preenchiam a lacuna com outra. Se a governanta, ama ou serviçal fosse agradável
tornava-se uma segunda mãe para seus filhos.
Era uma família tradicional do bairro de Vila
Isabel. Se deslocavam até Copacabana onde eram assíduos na Igreja
Presbiteriana. E eram sim, preconceituosos, não se misturavam.
No entanto, os varões caçulas, fugiam à regra.
Eram afeitos ao contato com as camadas populares e seus costumes,
particularmente o futebol, as festas, o consumo de álcool e tabaco. Os três
últimos na escala decrescente eram Gerson meu pai, Ernesto meu padrinho e o
caçula - Nancy.... Os três foram amadores do Confiança, clube de futebol criado
pela Cia. Textil, onde funciona hoje o Extra-Boullevard e a quadra do Salgueiro.
Meu pai
Este ingressou no serviço público em 46, pelo
Distrito Federal. Foi da equipe responsável pelos croquis do Maracanã e fiscal
durante a construção do Estádio Mario Filho. Contava-me que a cada dez
caminhões de cimento que entravam na obra, quatro saíam pelo portão dos
fundos, na Derby Club, com a carga intacta. Segundo ele com o material desviado
dava para construir dois Maracanãs. Como se depreende do fato, podemos afirmar
que não foi a Dilma quem criou a corrupção em obras públicas. Ela existe desde
tempos remotos.
Para desgosto de sua família, meu pai se
associou a uma mulata, com quem contraiu matrimonio em 1947: minha mãe, Zilda,
uma mulata com um belo pandeiro " aro 15 " , era filha de índio com uma negra . Tamanha era
a falta de recursos em casa, que ainda criança ganhou um caderno, e ela própria
construiu seu dicionário com mais de mil palavras. Alfabetizou e tomou tabuada
de filhos e netos)
Mas era um escândalo! Foram muitos, muitos
anos mesmo até que a aceitassem como parte da família. Este comportamento de
segregação só mudou com a leva de minhas primas diretas, e se manifestava
apenas de forma disfarçada, perdendo força. Somente na geração maravilhosa que
se seguiu, primos , 5º grau, o preconceito desapareceu por completo.
Imaginar ter sobrinhos mulatinhos e cabelo meio
pichaim era uma afronta, uma vergonha.
E mais, ter uma cunhada mulata e trabalhando
fora era inadmissível. Lugar de mulher é no tanque e na criação dos filhos.
Para se casar minha mãe teve que abandonar sua breve carreira como datilógrafa
da Fazenda Pública (Tesouro Nacional).
E eu sou a prova viva deste preconceito que se
impunha de todas as maneiras: explícito ou velado. Como resultado da combinação
étnica de três raças, nasci com a coloração de ‘burro quando foge’, meio
bronze, meio barro, meio tijolo. No entretanto, em meu registro de cartório
consta o nascimento de uma criança da " cor branca " . Se hoje precisasse ingressar
na Universidade, estaria fora das cotas raciais : sou branco, de papel passado,
por puro preconceito !
Eram sim preconceituosos, mais que isso,
implicitamente racistas.
Meu pai não. Ao casar-se, acabou ganhando oito
irmãos de côr. Era apenas dez anos mais jovem que o sogro e portanto falavam a
mesma linguagem, eram de uma mesma geração. Tornou-se em pouco tempo uma
espécie de irmão mais velho dos(as) cunhados(as). Com estes ia ao futebol, às
festas, à jogatina e ao caçhacal, completamente integrado ao modo de vida
popular, tão diferente do estilo austero, marca de sua família.
Lá pelos idos de 63, morávamos num apartamento
de subúrbio, em Olaria , de aluguel . Era bem frequentado por casais de amigos
do trabalho de meu pai - os engenheiros e suas esposas, que nas tardes/noites
de sábado e domingo participavam das rodadas de ‘buraco’. Embora subalterno e
com parco salário, fazia questão de recebe-los com pompa. Meu pai era um
excelente anfitrião. Tirava do armário sua melhor porcelana inglesa e os copos
de cristal, além dos guardanapos portugueses. Fazía-nos, aos filhos, polir com
flanela o assoalho de tacos de madeira: ficava qual um espelho, que dava até
para ver os fundilhos por baixo das saias. Na cristeleira sempre o licor de
genipapo feito por ele mesmo e o uísque, do bom. Preparava com prazer os
tira-gostos: a regueifa (pão envelhecido) com o pêsto de sardinha no azeite, a
farofinha de linguiça, salame e azeitonas.
Mas o golpe de 64 foi mudando aos poucos esta
realidade. Com aluguel de casa e três filhos em escola particular os encontros
foram se tornando cada vez mais escassos. Uma vez por mês apenas. E teve que
fazer suas escolhas. O primeiro corte orçamentário foi o seu vício, o tabaco.
Foi descendo de categoria. Os três maços diários de cigarros Liberty Ovage
foram trocados por Mistura Grossa que involuiu para o Continental sem filtro.
Para amenizar o pigarro adotou as piteiras, até que decidiu: fim do meu vício
ou filhos na escola pública. Optou por abandonar o vício.
Odiava a Castelo e aos militares, e sempre
apoiou o MDB, porém jamais se engajou na resistência. Tinha no suster a família
, sua ideologia. Por ser tão magro era chamado de bacalhau. Sei dizer que após
abandonar o tabaco ganhou uns 30 quilos e foi mudando seu humor. Esclerosou-se
precocemente. Tudo o irritava. Ao seu linguajar erudito incorporou palavrões.
Era do tempo em que impedimento era off-side, atacante center-half, e agora
pós-64 o keeper frangueiro era simplismente um goleiro filho da p...
Apesar desta mudança, conservava sua grande
virtude : era honestíssimo. Foi fiscal de demolições, e seus subalternos na
Superintendencia de Obras, todos possuíam casa própria e carro na garagem.
Desviavam todo tipo de material. Ele não.
Certa ocasião, já na SURSAN, durante as obras
de dragagem e canalização do Rio Timbó, localizaram um galeão holandês
naufragado no séc.XVII, cuja carga valiosíssima evaporou-se em menos de uma
hora. Engenheiros e operários saquearam tudo: prataria, joias, quinhões em
ouro, relíquias... Terminado o saque, sobrou jogado no meio da lama uma garrafa
de cerâmica vazia da famosa Genever , com a marca de Amsterdã no fundo. Este
foi o único objeto que levou para casa, com que pode contar a história do
galeão holandês aos filhos. Depois deu-a de presente a uma concunhada .
Ao final de sua vida, morando em Japuíba, já estava bem ranzinza,
mas cuidava dos netos com o maior esmêro.
Implicava muito comigo por conta de minha
atividade militante que não me proporcionava uma renda decente: a de professor.
Nas poucas horas que me restavam de folga entre os turnos, eu tirava uma
madorna, mas por pouco tempo. Era acordado aos berros. E eu nem precisava de
arapongas a vigiarem minhas atividades ‘subversivas’. Meu pai era o
garoto-propaganda. Me acordava aos berros assim: “ Acorda pra trabalhar vagabundo
... comunista filho da... ”.
Horas depois estava com vizinhos
na rua contando todo orgulhoso os feitos revolucionários do filho “...que
participou da greve tal, que enfrentou um dito tenente do INCRA...”, e batendo
boca com os reacionários do bairro. Vai entender... ?????
Era 1989, quando ele pulou a fogueira... num
dia de São João. Trago boas recordações dele.
meu padrinho
Meu padrinho era o Ernesto e morava na Pç
Afonso Pena. Seguiu sua paixão de garoto: o futebol. Tornou-se repórter
fotográfico. Foi fundador e 1º presidente da ARFOC/Rio em 47. Cobria os jogos
no Maracanã, e foi ele que me levou pela primeira vez ao Maracanã, em 1962 para
assistir Flamengo e Botafogo. Neste dia vi de bem pertinho o gênio das pernas
tortas entrar no gramado do Maracanã rodeado de crianças: Mané Garrincha. Não
fosse a derrota de meu Flamengo por 3x1, a alegria seria completa. Ver um
Maracanã literalmente lotado se levantando para reverenciar o craque, foi o
máximo para um guri de 6 anos apenas. Um espetáculo simplismente fantástico.
Além dos jogos, passou a compor a equipe de
Hélio Fernandes, na Tribuna da Imprensa, e foi se afastando da vida associativa
por razões óbvias: era fotógrafo oficial do Arsenal de Marinha ainda dos tempos
de Jango e não convinha, por segurança, envolver-se mais com a política
sindical. Arrefeceu, esmoreceu seu ímpeto. Tornou-se benemérito do ‘mequinha’,
o América F.C., e canalizou seu intelecto em prol do clube.
Há cerca de um ano atrás revelei um segredo
seu, que guardei por 29 anos: sete anos antes de sua morte, teve uma relação
extraconjugal, que gerou uma bela menina, hoje com 35. A priminha direta mais
jovem de minha geração.
O Gigolô (sem direito a foto)
O último da prole, o caçula, chamava-se ... Nancy. Um rapagão muito bonito , afeito a frequentar
os melhores ambientes da cidade. Nas tardes cariocas, era comum encontrá-lo com
amigos na Confeitaria Colombo. Assíduo frequentador das mesas de carteado da
Tiradentes e nos bailes do Elite ou Estudantina, exibia sua pecha de Casanova
impecavelmente bem vestido: terno de linho, chapéu panamá, sapato bico fino com
chapinha de metal. Com sua rotina atribulada de bom vivant não lhe sobrava
tempo para o trabalho.
Mas como abastecer seu guarda-roupas com belos
ternos importados? E suas despesas nas rodas de granfinagem das noites
cariocas? Simples !
Viria a se tornar um dos mais apessoados
gigolôs da Lapa e Mem de Sá. Passou a viver da exploração do comércio de corpo
alheio. Um explorador de mulheres. Isto sempre fez parte do sigilo familiar.
Mas veio o golpe, e a vida na Lapa passou a
ser mais vigiada, reprimida. Embora não fosse afeiçoado ao trabalho,
aproveitou-se na primeira oportunidade para se locupletar de uma função pública
por indicação de sei lá quem. Mas desde que a função lhe fosse prazeirosa, é
óbvio. E como foi!
Da noite para o dia, o gigolô assumiu sua
investidura em cargo público, sem concurso: já era um fiscal da SUNAB, melhor
dizendo, um achacador institucionalizado.
Lembro que aparecia na casa do ‘irmão pobre’
três vezes por ano. Encostava a viatura chapa branca e me chamava para ajudar .
Eu descia os três lances de escada, e quando via o porta-malas, estava abarrotado
de mercadorias: praticamente tudo produtos importados. Doces em compota, latas
de biscoitos finos, frutas cristalizadas, queijos franceses, frios e embutidos
de toda ordem, além dos vinhos e uísque de várias marcas. A maioria dos
produtos tinha a procedência das lojas Lidador.
Me entregava uma unidade de cada. E sempre
refugava o rosto ao afeto do sobrinho dizendo: “guarda (o beijo) para o teu
pai”. Filho da puta, ele era é racista !
Já pelos anos 80, e com seus 65, prestes a
entrar na andropausa e preocupado com a velhice batendo à sua porta, decidiu
que o melhor negócio era arrumar alguém para cuidar de si.
Tratou de arrumar alguém mais jovem uns vinte
anos mas que fosse encalhada, recatada, submissa, para que não corresse nenhum
risco. Com estas características , só a encontraria em um lugar. E o gigolô foi
bater na porta da primeira igreja que encontrou. Casou e tornou-se o falso
‘bibla’ mais asqueroso do mundo. Por sorte sua, a moça de 43 era decente,
generosa, educadíssima. Ele jamais mereceu isto.
Última vez que o vi, antes de morrer, ensaiou
criticar minha opção de comunista. Olhei o gigolô e deixei-o falando sozinho.
Não merecia resposta.
E ainda dizem que nunca existiu preconceito
racial no Brasil. Vai entender isto ?
Alberto Santos
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pela visita!