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quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Uma villa fluminense desaparecida



                      Uma villa fluminense desapparecida

por   José Mattoso Maia Forte  
(texto avulso  Instituto Histórico)

O artigo de Maia Forte foi escrito em 1937, enquanto que  as ilustrações de Henrique Cavalleiro datam de 1927. Há discrepancia entre o relato e às imagens, o que nos aponta para o acelerado processo de degradação no curtíssimo espaço de uma década.




        A poucos kilometros de Nictheroy – menos de 50, por estrada de rodagem – jazem as veneráveis ruínas da Villa de Santo de Sá. Não é de Sá como se fora de Pádua ou de Lisboa. O orago era o elo local : o  “de Sá” foi adminiculo que substituiu o verdadeiro, de “Casarabú”, como se escreveu no auto de fundação da Villa, ou de “Macacu”, denominação mais usual. O “Sá” desse Santo Antonio explica-se pelo facto da população local querer prestar uma homenagem a Artur de Sá e Menezes, que, sendo governador e capitão general do Rio de Janeiro, foi ali, pessoalmente, em 5 de agosto de 1697, erigir o povoado em Villa, em nome d’El Rey, D. Pedro II de Portugal.

 
 
Carta de Diligencia de D. Pedro II, de Portugal
 
     Pretendeu-se substituir o nome de Macacú, pelo qual era conhecida a região banhada por esse rio, mas foi em vão porque “ Santo Antonio de Sá” ficou quase que para uso official. Os habitantes ainda hoje, parecem ignorar a denominação do seu districto, conhecendo-o de preferência por Macacú. No entanto, naquella época já distante, o Macacú não era tão abominável porque não se celebrizara ainda pelas febres, malignas, perniciosas, que irromperam mo primeiro quarto do século passado, que ceifaram milhares de vidas, nem fizera d’alli, como em grande parte do Recôncavo da Bahia do Rio de Janeiro, o seu habitat.
 
 
      Não é difícil uma visita à Villa desapparecida. O excursionista, partindo de Nictheroy, chega rapidamente a Neves, já no município de São Gonçalo, onde está o kilometro 0 da estrada-tronco norte fluminense. Passa pela Villa de São Gonçalo e, adiante, sucessivamente pelo Alcantara, que lembra a doçura das excellentes laranjas sellectas e abacaxis: Guaxindiba, Itaborahy, berço das glórias de João Caetano, a terra amada de Joaquim Manuel de Macedo, e , no kilometro 34, attinge a primeira etapa da excursão, Venda das Pedras Neste logarejo, à margem da estrada de ferro Leopoldina (linha para Macahé e Campos), não faltará quem indique ao excursionista a estrada para Porto das Caixas, cujo percurso não excede de seis kilometros.
 
                                                              Estação Ferroviária - Venda das Pedras
E em seu  termo attingirá o antigo e famoso entreposto que, há cerca de oitenta annos de distancia, concentrava um intenso commercio de assucar, aguardente, café e cereais, producção frta que descia por faluas, saveiros e lanchas pelo Aldêa, rumo do Macacú e, por este, águas abaixo, até sua foz na Bahia, atravez da qual chegava aos trapiches da praia de D, Manuel, da Prainha, do Vallongo, da Saude ...
 
 
        Porto das Caixas, em cujo território, então simples curato, vi a luz do dia, Joaquim José Rodrigues Torres, Visconde de Itborahy, fluminense illustre, que foi em longa phase da história politica e administrativa do Império, um dos mais eminentes estadistas, é hoje um simples arraial, decahido de sua pujança comercial de antanho e cuja vida é alimentada pela existência da estação da Leopoldina, linha de Friburgo. Pelo centro do arraial e pelas margens do Aldêa, onde ficava o “ porto “ defrontam-se os vestígios dos antigos armazéns, dos sobrados senhoriaes onde os abastados commerciantes hospedavam a boa clientela do interior nas suas idas e vindas à Côrte.
 
     Não faltará,  também ahi , quem indique ao excursionista a estrada para Macacú.
        - Vá andando ... vá andando sempre.. até o fim da vida – ouvirá da gente de quem indagar o caminho a seguir.
        A estrada que vae para Macacú, digamos antes para Santo Antonio de Sá, é, nas  épocas não chuvosas, perfeitamente transitável por automóveis pequenos, como o Ford ou o Chevrolet e  os do seu porte, que trafegam sem obstáculos  pela estreita senda, que só dá passagem a um vehículo.
        Avançando um pouco pela estrada, deixa-se a várzea do Aldêa e entrar-se-á na várzea que o Cacerebú alaga com suas cheias periódicas. Ei-lo defluindo ao longo da estreita via, um aterrado que se fez há pouco menos de cem annos e que, até hoje, tem resistido ao embate das suas enxurradas. É o aterrado do Tipotá. O Cacerebú aparece ahi – e eestá próximo da sua embocadura no Macacú – mais um largo vallão, do que o Cacerebú de tempos idos, pelo qual navegavam canoas e balsas carregando aguardente em pipotes e as caixas resistentes, de boa madeira de lei, que supportavam o peso de 3º a 35 arrobas de assucar. Verdade é que uma parte do rio parece encoberta pela ‘tábua’ ( lypha dominguensis, Kunlh ), que fornecce abundante matéria prima para a industria local das esteiras, fonte de actividade que provê à subsistência da gente pobre das redondezas. O ‘tabual’ verdejante, ocultando o brejo, alonga-se de um lado e de outro lado, a perder de vista, confinando ao longe com a orla dos  pastos. Um bando de anuns – com a sua plumagem negra e luzida, alça-se em revoada à passagem do auto. .. Não mais as garças, os irerês, os patos e  marrecos selvagens, qe antigameente se abeiravam das caudaes, dos brejos mansos e profundos... e hoje afugentados para mais longínquas paragens pelo fuzil dos caçadores... Só os anuns, lúgubres na cor das suas pennas, como que vestindo um luto eterno pelos que partiram daquella região comdennada e malsã...
 
        Ao fundo, no ultimo plano do horizonte, o olhar do excursionista pousa na linha sinuosa das serras e abarca de um golpe os primeiros contrafortes da Cordilheira do Mar, as vertentes de Therezopolis e de Nova Friburgo, das quaes se derivam as águas do Guapy-mirim e do Guapy-assu; mais para o norte as que se derivam para o Macacú e que almentam as reprezas da água límpida e saborosa com que o nictheroyense mitiga a sede.
        Em plano mais próximo, quase em frente, o excursionista avista sobre um outeiro uma casa de aspecto semi-senhorial, casa antiga, modernizada ao gosto do século passado, tendo a se lado a capellinha térrea. É, provavelmente, a antiga fazenda de Santo Antonio, conhecida no secullo passado e ainda hoje por “ fazenda dos Nascentes”, do nome de algum de seus possuidores.
 
      Macedo Soares, o illustre  magistrado que morreu sendo Ministro do Supremo Tribunal Federal,, já escrevera nas suas notas a Cortine Laxes ( Regimento das Camaras Municipaes) esta observação : “No município de Itaborahy, como nos de Nictheroy, Maricá, Macacú, Magé, Iguassú e outros que floresceram no seculo passado e no primeiro quarto deste século (XIX), era rara a fazenda de certa importância, engenho real, como se dizia, que não houvesse capella com o seu capellão e abundante se neccessário para a celebração de todos e quaesquer actos religiosos”.
        Do outeiro  immediato destacam-se entre o mattagal, uma velha torre despedaçada, e os destroços de um edifício. Um pouco além, o cimo das fachadas, ainda de pé, de duas igrejas.
 
        O excursionista, atravessando a várzea que circunda o outeiro da casa velha, galga a rampa do segundo e penetra no coração – que já nãao pulsa há menos de um século da Villa morta.
 
        Rasteira vegetação cobre ruas que existiram e os alicerces da casaria que desappareceu de todo. Deve ter sido aqui o adro da matriz, onde n’outros tempos  se improvisava o coreto para as festas do padroeiro... A seguir advinha-se a praça onde, nos tempos coloniaes se ergueria o pelourinho como symbolo da autoridade municipal. Da parte externa da velha matriz tudo quanto resta é a torre quadrada, sem cupola o cobertra: abrem-se nella, aos ventos, as quatro portinholas sobre cujos arcos se firmavam os sinos de bronze qe tangiam para chamar os fieis a participarem do culto.
      Desappareceram a fachada e o corpo central. Ve-se ao fundo o arco, perfeito, do cruzeiro e o logar do altar-mór. Nem mais indícios dos quatro altares lateraes. O que não foi levado, sabe-o Deus para onde, imagens, locheiros, castiçaes, sacrário, ali só esborrou: o côro, se o havia, os altares com suas obras de talhe, a pia baptismal, o púlpito, tudo,, enfim, que davam solemnidade e magnifiencia aos actos do culto, imponência ao templo.
 
“ Ergueram a primeira ermida, em 1612, Manoel Fernandes Ozouro e mulher, D. Isabel Martins, e que ainda tiveram a generosidade de doar 350 braças de terra para mante-la e outras 100 , em quadra, por trás da mesma ...
Um vigário da freguezia, Luiz Gago Machado modificou-a em 1704 e principiou as obras da torre. Outro vigário, José Pereira Bravo, sucessor do precedente, faria m 1786 obras maiores. Quem, porém, promoveu a reedificação completa da egreja (mais tarde reparada pelo governo provincial) , foi o vigário Francisco Ferreira de Azevedo, cujas virtudes o elevariam em 1811, à dignidade de Bispo de Meliapor, in partibus infidelium e em 1818 à de Prelado da diocese de Goyas,.....
Ficara a egreja com 19 mts de comprimento até o arco do cruzeiro e 8 mts de largura. Do arco ao fundo contavam-se 15 mts de comprimento por 5,30 mts de largura."
 
Coroam estas ruínas, samambaias , cipós e plantas várias, cobrindo com suas folhagens e ramadas as chagas mais velhas que o tempo foi abrindo sobre as paredes ennegrecidas. O mattagal, cercando o templo arruinado, ivadiu e cobriu a nave sobre a qual, em piedosa uncção, se ajoelharam várias gerações de fieis. Entremeando-se com o mattagal, as laranjeiras põem nesse quadro lúgubre a alegria de seus dourados pomos.
        Acompanhando idealmente o traçado da praça municipal , ou do rocio como se chamava ordinariamente, depara o excursionista, semi-ocultas por arbstos diversos e pelas folhagens das bananeiras, os destroços do convento e da egreja conventual alih erigido sob a invocação de São Boaventura e cuja construcção em fins de 1648, antecipando-se demeio século à fundação da Villa.
        Estariam os frades capuchos, obrigados, então, a manter aulas “das primeiras e segundas letras :  mas essa condição não se cumpre há longos annos, informa Monsenhor Pizarro”.
        Ao lado delle, unido a elle, outros destroços, estes os da Capella ainda ccom a sua torre à esquerda, dos Terceiros de São Francisco, que “ o Prelado da casa dirigia, em conformidade dos seus presumidos e fantásticos privilégios” observava o mesmo Monsenhor.
        Ambas as pardacentas ruínas franciscanas mostram até agora, na fachada, e na parte superior, as linhas de estylo a que obedeceu a construcção :  portas, janellas, ornamentos e as cruzes sem braços ...(cita Frei Francisco de São Carlos .......)
        Em frente aos dois templos, occulta nas sombras do matto, encontra-se a columna – apenas o fuste e o capitel – que sustentara o cruzeiro, o cruzeiro clássico que ornava os adros das nossas antigas egrejas do interior e dos quaes até o presente existem magníficos modelos nas cidades de Minas e do Norte do paiz.
        Do poder civil da Villa  topam-se as ruínas de metade da Casa da Câmara, os vestígios da escada de um só lance, que, da parte externa, conduzia para a sala das sessões, e seria também a do Jury.
 
 
        Se as vetustas e derrocadas paredes pudessem, como ecos do passado, revive-lo, evocariam as lutas dos partidos, no Império, para a posse das cadeiras de vereadores e das varas do juizado de paz; as tricas e os truques dos potentados de aldeã que manejavam a seu talante  o baixo eleitorado ao tempo da eleição indirecta, na disputa da vereança, em torno da qual gyrava toda a actividade política das nossas villas do interior.
       Na parte térrea, quasi, senão abaixo do nivel do terreno, janellas e portas om seus reforçados varões de ferro, carcomidos, pela ferrugem, assignalam que ali fora a cadêa onde os condemnados pelo tribunal popular expiavam seus hediondos crimes... o escravo que matara o feitor ou o próprio senhor para vingar-se das azorragadas que lhe haviam acerado as arnes; ou o faccinora que, alta noite, de tocaia, assassinara um viajante para liquidar com sangue a querella pela posse de uma nesga de terras ou de uma nascente d’água...
        Das casas térreas – pois que as chronicas pouco falam das de sobrado – se resquiios há, jazem sob o emmaranhado de multiplas herbáceas. Pelas ruas - talvez menos de meia dúzia – que houve, nem pôde o excursionista imaginar quaes fossem, por onde passariam, para onde se dirigiriam. Laranjeiras aqui, bananeiras acolá, dão a impressão de que a paisagem não fora uma Villa, mas apenas os restos de um abandonado pomar.
        De cima do outeiro estendendo a vista sobre a campina, divisa-se a linha do aterrado do Tipotá, como uma solução de continuidade no estenso e alto tapete de verdura. A seu lado dissimula-se o Cacerebú, em cujas margens se altêa  a folhagem da tábua, oscilando ao vento ... Por traz o secular convento, onde o u se arredonda em barranco, de suave declive, com suas águas escuras, de manso, sem que a brisa lhe encrespe o dorso, flue preguiçosamente o Macacú, que em colleios de léguas, vae despejar-se na Guanabara ...
 
           
           
 
           
           
 
           
 
 
 
 

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