João Batista de Andrade - Liberdade de Imprensa (1967)
documentário
A inauguração da TV Globo ocorreu em 26 de abril de 1965. Dois meses depois, Carlos Lacerda denunciou como ilegais as relações da emissora com o grupo norte-americano Time-Life.Três anos antes, um acordo polêmico assinado entre Time-Life e as Organizações Globo, permitiu à empresa brasileiro acesso a um capital em torno de 6 milhões de dólares, o que lhe garantiu recursos para comprar equipamentos e montar sua infra-estrutura. Em troca, o Time-Life teria participação em 30% de todos os lucros aferidos pelo funcionamento da TV Globo. O acordo foi considerado ilegal, pois a Constituição Brasileira naquela época proibia que qualquer pessoa ou empresa estrangeira possuísse participação em uma empresa brasileira de comunicação.
A questão foi levada ao conhecimento do Contel (Conselho Nacional de Telecomunicações), que em junho de 1965 abriu um processo para investigar o caso. Paralelamente, em outubro do mesmo ano, o deputado Eurico de Oliveira apresentou um requerimento à Câmara pedindo a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito.
No dia 20 de abril de 1966, o presidente da empresa, Roberto Marinho (na foto acima com a esposa, Lili de Carvalho, durante a posse na ABL) depôs e explicou aos congressistas que dois contratos haviam sido firmados com o Time-Life, um contrato de assistência técnica e uma conta de participação. Como uma tentativa de legalizar o acordo, mencionava-se claramente nos termos deste acordo que a Time-Life ou Time Inc. não tinha o direito de participar ou de interferir na administração da Globo.
Na prática, Time-Life possuía grande influência dentro da Globo: Joseph Wallach, o ex-diretor da Time-Life na Califórnia, se tornou de fato um diretor executivo dentro da Globo.
Os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito terminaram em setembro de 1966, com um parecer desfavorável à Globo. Os parlamentares consideraram que os contratos firmados com o Time-Life feriam a Constituição, alegando que a empresa norte-americana estaria participando da orientação intelectual e administrativa da emissora.
Em fevereiro de 1967, o governo federal mudou a legislação sobre concessões de telecomunicações, criando efetivas restrições aos empréstimos de origem externa e à contratação de assistência técnica do exterior. Contudo, tratava-se de um dispositivo legal sem efeito retroativo, e os contratos do Time-Life com a TV Globo eram de 1962 e 1965.
Em outubro de 1967, o consultor-geral da República Adroaldo Mesquita da Costa emitiu um parecer sobre o caso Globo/Time-Life. Ele considerou que não havia uma sociedade entre as duas empresas e assim a situação da TV Globo ficou oficialmente legalizada.
Nos bastidores
Em julho de 1998, Helena Sousa, doutora em Sociologia e professora associada do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho/Portugal, apresentou na Conferência Científica da International Association for Mass Comunication Reserch, em Glasgow/Escócia o artigo “Time-Life/Globo/SIC: um caso de reexportação do modelo americano de televisão?”, que conta alguns aspectos relacionados com os bastidores da operação entre a Globo e o grupo Time-Life. Leia os principais trechos:
De fevereiro a maio de 1959, o jornal O Globo deu grande atenção à carreira diplomática de Claire Luce, a esposa de Henry Luce, o presidente da Time-Life. A simpática cobertura da atividade diplomática de Claire Luce foi entendida como demonstrativa do interesse da Globo em desenvolver contactos e estreitar relações com grupo americano na área televisiva.
A Time-Life havia já feito, no Brasil, alguns contactos no sentido de estabelecer parcerias. O jornal O Estado de São Paulo, por exemplo, não mostrou interesse em desenvolver esta relação. Efetivamente, a Constituição brasileira proibia grupos estrangeiros de comprar ou de participar na administração ou orientação intelectual de empresas de comunicação nacionais. No entanto, tal não foi entrave para o desenvolvimento da parceria entre a Globo e o grupo Time-Life.
Apesar do texto da Constituição, o governo entendeu que havia todo o interesse na criação de uma rede televisiva que pudesse ser utilizada para unir o país em volta das pretendidas reformas econômicas e industriais.
A Time-Life procurava uma forma de entrar no mercado e a Globo queria dinheiro e conhecimento prático: estes eram os ingredientes para um guião perfeito, escrito por um barão local e financiado por uma multinacional, sob o olhar dos militares que convenientemente ignoraram a natureza inconstitucional do acordo.
Assim, no dia 24/07/1962, a recém criada Globo TV Ltda assinou, em Nova Iorque, dois contratos com a Time-Life. Os aspectos genéricos do acordo ficaram definidos no Contrato Principal e os aspectos técnicos e de caráter mais específicos foram apresentados no Acordo de Assistência Técnica. Estes dois acordos foram preparados por Luis Gonzaga do Nascimento Silva, um acérrimo defensor dos interesses da Globo que tinha também uma relação privilegiada com o embaixador brasileiro nos Estados Unidos, Roberto Campos.
Antes mesmo da assinatura destes contratos, a Globo recebeu 1,5 milhões de dólares da Time-Life Inc. O Contrato Principal estabelecia responsabilidades várias para a Globo e para a Time-Life. A TV Globo comprometia-se a adquirir e instalar o equipamento de transmissão de televisão e a construir um prédio para a sede da Globo no Rio de Janeiro. O edifício deveria ficar concluído no dia 01/07/963. Era também responsabilidade da Globo conseguir a concessão para operar o canal 4 do Rio de Janeiro, que seria utilizado para as transmissões da Globo.
Por seu lado, competia à Time-Life as seguintes responsabilidades:
a) Prestação das informações técnicas que fossem de seu conhecimento no ramo de televisão.
b) Acolhimento e formação nas suas estações, escritórios e lugares de transmissão de televisão da pessoa ou das pessoas enviadas pela TV Globo.
c) Troca de informações e de dados de direcção administrativa ou comercial que pudessem ser pertinentes.
d) Assessoria e consultas de engenharia, como planejamento, construção e operação de estúdios e equipamento.
e) Orientação para a aquisição de filmes e programas produzidos em território estrangeiro.
f) Uma contribuição financeira.
O Contrato Principal também clarificava que a Time passaria a receber 30% dos lucros da TV Globo. No sentido de assegurar o controle das finanças da TV Globo, este contrato previa ainda que todos os balanços da TV Globo fossem conferidos e aprovados pela Ernest & Ernest que, para tal, teria livre acesso aos livros e arquivos da TV Globo. Além disso, a Time poderia visitar e inspecionar qualquer das propriedades da TV Globo, “examinar os seus livros e arquivos, discutir os negócios da sociedade com os funcionários da TV Globo, sempre que desejar, obrigando-se a TV Globo a fornecer à Time outras informações relativas aos negócios da sociedade em conta de participação”. Este contrato deveria durar onze anos e seria quebrado se, por qualquer razão, Roberto Marinho e a sua esposa deixassem de ter 51% das ações da empresa.
O Contrato de Assistência Técnica entre a Globo e a Time-Life foi assinado no mesmo dia do Contrato Principal (24/07/1962). No entanto, enquanto que o Contrato Principal foi assinado com a Time-Life Broadcasting Inc., o Contrato de Assistência Técnica foi assinado com a Time Inc.
A fundamentação para a assinatura deste contrato de assistência técnica relacionava-se diretamente com a experiência da Time nos setores radiofônico e televisivo: “(...) a Time opera diversas estações de rádio e televisão nos Estados Unidos e em outras partes e, através de sua longa experiência, adquiriu considerável experiência técnica, artística e comercial no campo das operações de televisão comercial”. Considerando que a televisão dava ainda os seus primeiros passos no Brasil, a Globo precisava, de fato, de know-how nesta área e a Time aparecia como o parceiro ideal. O Contrato referia a experiência técnica, artística e comercial da Time e expressava o desejo da Globo em beneficiar deste saber acumulado.
Entre as inúmeras clausulas deste contrato, destacamos alguns aspectos da ‘assistência técnica’ que a Time se comprometia a prestar à Globo:
a) A Time dará assistência no campo da técnica administrativa, fornecendo informações e, por outros modos, prestando assistência relacionada com a moderna administração de empresas e novas técnicas e processos relacionados com a programação, noticiário e atividades de interesse público, vendas, promoção, publicidade, atividades e controle financeiros, orientação de engenharia e técnica, assistência na determinação das especificações do prédio e do equipamento, assistência na determinação do número e das responsabilidades adequadas do pessoal a ser empregado pela TV Globo e, em geral, orientação e assistência com relação aos aspectos comercial, técnico e administrativo da construção e operação de uma estação de televisão comercial. Com referência a essa assistência, a Time enviará à TV Globo no Rio de Janeiro uma pessoa com habilitações equivalentes às de um Gerente-Geral de uma estação de televisão, na capacidade de consultor, pelo prazo que a TV Globo desejar. Além disso, a Time fornecerá à estação, durante a vigência deste contrato de assistência técnica, um especialista na área de contabilidade e finanças.
b) A Time treinará, nas especialidades necessárias para a operação de televisão comercial, o número de pessoas que a TV Globo desejar. Esse treino terá lugar nas diversas
estações de televisão da Time ou nos seus escritórios em Nova Iorque.
c) Na medida que a Globo o solicitar, a Time treinará o pessoal da TV Globo nas instalações da TV Globo no Rio de Janeiro. Para esse fim, a Time enviará ao Rio de Janeiro, pelos prazos requeridos, pessoas com os necessários atributos para conduzir esse treino.
d) Sempre que necessário, a Time orientará e assistirá a TV Globo na obtenção de material de programas de televisão em Nova Iorque e nas negociações com protagonistas e atores. Essa orientação relacionar-se-á com os aspectos financeiros de tal obtenção e negociações, bem como o valor artístico das mesmas. Em casos especiais, a Time assistirá a Globo na venda de anúncios, visitando em Nova Iorque os representantes de potenciais anunciantes (Contrato de Assistência Técnica citado em Herz, 1991).
O Contrato de Assistência Técnica contempla outros aspectos que vão, efectivamente, para além da chamada ‘assistência técnica’. Determina, por exemplo, o valor financeiro destes serviços que a Time se propõe prestar à TV Globo, e contempla a duração deste contrato. Tal devia durar dez anos, sendo automaticamente renovado.
De fato, os dois contratos assinados entre estes dois grupos multimedia (se bem que a Globo estivesse ainda na fase inicial do seu desenvolvimento) tiveram amplas repercussões. Tal como previam os contratos, o grupo Time-Life passou a assistir e a controlar a TV Globo a vários níveis. O representante da Time-Life na Globo, Joseph Wallach (ex-director da estação de televisão da Time-Life na Califórnia), tornou-se, na prática, o diretor executivo da Globo. Técnicos e especialistas em diversas áreas televisivas da Time-Life viajaram para o Rio de Janeiro no sentido de transmitir os seus conhecimentos. Por sua vez, funcionários da Globo deslocaram-se, igualmente, a Nova Iorque para serem treinados in loco pelos profissionais de televisão da Time-Life.
Para além de todo o apoio administrativo, técnico, comercial e artístico, a televisão brasileira terá recebido do grupo norte-americano, entre 1962 e 1966, mais de seis milhões de dólares. De acordo com Herz, é preciso considerar, porém, que a expressão do mercado publicitário e da receita da emissora de televisão, naquela época, era muito menor que atualmente: “O ingresso de mais US$ 6 milhões numa emissora de televisão tinha, na época, muita expressão”. Ainda que a transferência de capitais e de know-how tenha sido entendida como inconstitucional e injusta para com as outras estações de televisão que estavam a tentar impor-se no mercado, o que efetivamente aconteceu foi que a Globo conseguiu - através destes meios - garantir uma sólida posição no mercado televisivo brasileiro.
O acordo com a Time-Life foi fundamental nos primórdios da emissora por dois motivos: em primeiro lugar e acima de tudo porque significou um fluxo de capital indispensável para a implantação de uma televisão altamente competitiva e, em segundo lugar, o acordo de orientação técnica permitiu à Globo implantar um modelo de televisão comercial semelhante ao modelo americano mais avançado.
Um membro da primeira equipa da Globo, Herbert Fiúza, explica a dependência da Time-Life: “No primeiro ano (...) trabalhamos nos moldes das coisas que havíamos aprendido com os americanos. A Globo era inspirada numa estação de Indianápolis, a WFBM. E o engenheiro de lá foi quem montou tudo, que a gente não sabia nada”. Independentemente das questões técnicas, o staff da Globo não tinha, então, treino em televisão. Daí, o empenho em aprender com a experiência da Time-Life. Assim, com recursos financeiros, apoiada na experiência da Time-Life e seguindo as suas orientações e conselhos, a Globo afirma-se como a televisão com maior sucesso comercial no Brasil. Em 1969, a rede Globo era já líder de audiências. Outras redes de televisão, tal como a Tupi e a Excelsior, não tinham recursos humanos nem financeiros para competir com a estratégia da Globo e acabaram por encerrar as suas portas. Nos anos 70, a Globo era, na prática, a rede de televisão do regime. Os militares investiram não só na expansão da sua rede como lhe deram o privilégio de receber a publicidade institucional do regime.
Formalmente, o acordo entre a Time-Life e a Globo terminou em 1969, após uma complexa investigação parlamentar a esta associação de interesses. Nessa altura, poder-se-ia argumentar que o apoio da Time-Life era já dispensável. A Globo tinha conquistado o primeiro lugar no mercado televisivo brasileiro e a transmissão de conhecimentos nos aspectos fundamentais do negócio televisivo tinha já acontecido. No entanto, e apesar desta desvinculação formal, alguns antigos funcionários da Time-Life continuaram a trabalhar na Globo e a viver no Brasil. Joseph Wallace, por exemplo, manteve-se como diretor-executivo da Globo até os anos 1980.
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