“Não importa nada:
Nem o traço do sobrado / Nem a lente do
fantástico,
Nem o disco de Paul Simon / Ninguém, ninguém é
cidadão...
O Haiti é aqui. ”
Quem disse que eu nunca tive cabelos?
Esta foto tirada em 1994 demonstra o contrário: aos 38 já era grisalho mas
ainda tinha cabelos. Mas quero falar mesmo é da pessoa que está a meu lado
nesta foto.
Minha adorável e inesquecível mãe,
Zilda (Zildinha p/seus médicos e os mais íntimos): a única evangélica que conheci que adorava
carnaval. E eu explico.
Era mulata, aro 18, filha de negra com índio (pipipã).
Foi criada, conforme suas origens, à luz do sincretismo religioso. Tinham o seu
terço e crucifixo como apetrechos de fé, mas não faltava em casa de vovô
as imagens de São Jorge e São Sebastião, o copo d’água, o sal grosso, o galho de arruda e o manjericão. Minha mãe viveu sua infância , nas primeiras décadas do século
passado em uma sociedade que excluía do convívio social os mais pobres, melhor dizendo, os mais
pretos.
Nesta família de cafuzos, seis meninas (uma falecida ainda jovem) e 3
varões. Apesar de todas as dificuldades, além de meu avô, da Fazenda, das 5 irmãs quatro se tornaram
funcionárias federais pela Fazenda Pública, mediante concurso. Dos homens dois
também aderiram ao funcionalismo público: um pela pela TV Educativa, e outro pela RFFSA
, este o Jorge, Salve Jorge! Diga-se de passagem o único vascaíno de uma prole
rubronegra.
Posso dizer com orgulho que eram pretos de valor, afeitos ao
trabalho, um perfil bem diferente da imagem estereotipada do negro “fujão”,
arredio e preguiçoso, que impregnou e impregna o inconsciente
coletivo até os dias atuais ( os que vivem do bolsa-família, que são molambos, frRamenguistas, marginais). No entanto, este status de trabalhadores honestos, não os impedia de participarem ativamente dos "rituais pagãos" : o futebol, a capoeira, a roda de samba, o cachaçal.
A falta de
recursos era tão grande que não possuíam em casa um dicionário sequer. Mas isto
não era impecilho para quem queria aprender. Pois minha mãe aos 8 anos iniciou
ela mesma a transcrição de palavras para um caderno com mais de 1.000 palavras, significado e sinonimos:
muito antes do Aurélio, ela própria construiu seu dicionário. Em sua adolescência
foi amiga de Angela Maria, que anos mais tarde viria consagrar-se como cantora de sucesso. Já
aos 20 tornara-se datilógrafa no gabinete do então Ministro Gastão Vidigal,
época em que conheceu meu pai: branco , funcionário do Distrito Federal e de
família presbiteriana.
É certo que sofreria pressões e
discriminação. A primeira delas por ser de origem negra, a segunda por trabalhar fora, e a terceira por
sua orientação religiosa. E assim, minha mãe, ao longo dos anos foi sendo "embranquecida", abandonou sua carreira funcional, aderindo ao prebiterianismo:
tudo em função de preservar sua nova família nuclear. Foi um processo lento,
paulatino, gradual, creio mesmo que doloroso, até que aceita pela “nobre”
família caucasiana.
Em outro post já havia demostrado
como o preconceito em família, e o racismo no Brasil tem vários matizes e manifestações: quase sempre
de forma sub-reptícia. Todas abomináveis. Nasci moreno, de mãe mulata... mas
registrado como de cor branca, uma tentativa de minimizar a admissibilidade de miscigenação com
uma raça “inferior”(V. certidão)
Mas não adiantou !
Condicionou-se em ser evangélica, mas todos os anos , nos
quatro dias de carnaval, que retiro que nada ! Lá estava ela virando noite em frente à Tv preto e branco,
assistindo aos bailes e concursos de fantasia do Teatro Municipal, aos desfiles
das escolas de samba na Presidente Vargas ou da Apoteose. Amanhecia o dia, e lá
estava ela aguardando o desfile da última concorrente, torcendo apaixonadamente por sua escola de coração.
"Ah minha Portela, quando vi voce passar, senti meu coração apressado ... foi um rio que passou em minha vida, e meu coração se deixou levar "
Levantava-se da poltrona
apenas para coar o café e preparar a mesa de nosso breakfast.
Lembro desta foto de 1994, ano em
que eu e minha esposa, a Miriam, residiamos na pracinha do Bairro de Fátima.
Minha mãe decidiu passar uns dias em nosso conjugado, durante o Carnaval. E
apesar de sua muleta canadense (sofria de artrose/osteoporose) nos acompanhou e
ao bloco do bairro com muita animação, por quase uma hora.
Passou por um processo de
embranquecimento consentido, mas não arrancaram-lhe a alma e seu amor pela
cultura de sua raça.
Zildinha se foi numa manhã de primavera, no ano
de 2005, deixando gratas lembranças. E tenho muito orgulho de ter sido seu
filho. “ Apesar ” de ser evangélica, não
era hipócrita, e adorava carnaval porque ...
.... hoje tem marmelada , pois o circo já chegou !
Carnaval 1980 - o 1º pós-Anistia
tri-empate
campeãs Portela, Imperatriz e Beija-Flor
"hoje tem marmelada"
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