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quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

PROFESSOR NEFELIBATA, PRESENTE !

  "Infelizmente, setores importantes da sociedade não fazem a menor idéia do que significa tortura. Tortura é uma das práticas mais perversas. É a submissão do sujeito, da vontade, ao impor-se a ele a certeza da morte. Mas não uma morte qualquer, é a morte com sofrimento, a morte com muita agonia. É a morte que vai acontecendo bem devagar, porque o desespero deve ser potencializado. O choque elétrico rasga em solavancos as entranhas do indivíduo e o coração parece que vai explodir. O afogamento mistura ar e água, é a consciência da parada cardíaca. A dor dos pulmões que vão se encharcando. O pau de arara, o cigarro aceso queimando a pele e a carne várias horas seguidas e em várias horas do dia, da noite, da madrugada...".
                                                                         ( Alcir Henrique da Costa - GTNM/RJ )




Neste 12 de dezembro de 2013 completa um ano do passamento do companheiro ALCIR HENRIQUE DA COSTA. Tive o privilégio, e por que não dizer, prazer de  privar com Alcir algumas pautas de jornal, quando generosamente me concedeu em duas ocasiões “páginas duplas” em um periódico com 16, do jornal PÚBLICO, versando sobre denúncias contra a Fundação IBGE : fraudes em licitação,manipulação de dados estatísticos. O bom humor sempre foi sua marca pessoal .

“Alcir iniciou sua militância no movimento estudantil como aluno da PUC/RJ e pelo seu intenso envolvimento em prol de melhores condições de ensino é expulso da referida Universidade e ingressa na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, continuando suas atividades, na luta pela reforma universitária, no início dos anos de 1960. Nessa época participa como um dos coordenadores do Programa Nacional de Alfabetização do Método Paulo Freire.

A partir do golpe civil militar de 1964, continua sua militância e no final dos anos 60 é obrigado a viver na clandestinidade. Preso duas vezes em 1970 e 1972, foi violentamente torturado. Ao sair da prisão vai para o Peru com sua companheira, Flora Abreu e os dois filhos pequenos.


Ao retornar do exílio milita no Comitê Brasileiro pela Anistia/RJ e mais tarde com um grupo de ex presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos, funda o GTNM/RJ.




Militante da esquerda nos anos 60, Alcir foi preso e torturado pela ditadura militar que assaltara o Planalto àquela época. Sociólogo e Escritor, Alcir retornou à militância após o exílio vivido no Chile e na Albânia. No final dos anos 90, elege-se diretor do Sintrasef, fundando o jornal PÚBLICO – cuja qualidade era motivo de grande orgulho para a entidade.


·         O Público, mensal que começou a ser publicado em setembro de 1996, com doze páginas em tamanho tablóide, e que já em 1997 passou a ter dezesseis páginas. Esse jornal é enviado pelo correio para casa de todos os trabalhadores filiados ao Sindicato.
E foi nas páginas do PÚBLICO que Alcir imortalizou o irônico e questionador personagem de cartoon, o ‘Professor Nefelibata’.
Publicou vários livros, artigos e ensaios.


Vestibular / O devorador de calendários

por Alcir Henrique da Costa


Mãe cutuca, Aderbal pula da cama. Tonto, não sabe onde está. O corpo lhe dói, cada osso. Mas Aderbal sabe que tem que estudar, e para estudar tem que trabalhar com as duas bacias: a de alumínio e a do corpo, que se encaixam como obra de deus. O sol forte queima as areias dos desertos e deixa alvas, tinindo, as roupas dos clientes. Sem Aderbal, é tão difícil cumprir as tarefas... A mãe lamenta, mas não tem saída “Tenho eu mesma que levar e buscar as coisas.” Ele me ajuda tanto que não posso negar a importância, para ele, desse tal de Vestibular. Mas que eu acho bobagem tudo isso, eu acho.

Mulher esmirrada, conversa com ela mesma quando as outras entoam o seu canto. Ali, todos os homens partiram para cidades grandes. Deixaram as mulheres sozinhas com as crianças, seus sonhos e a rotina — E o vestibular? Implacável, cada vez mais perto, é igual ao leviatã que vem chegando e emagrecendo os meses já cada vez menores. Sabe-se, isso sim, que aquele que está na espreita é o devorador de calendários. O que torna o tempo pedaços de tempo, os meses cada vez mais colados aos seguintes. Outubro já é novembro e novembro é final de dezembro. Pobre mãe do Aderbal, vivendo todos os dias a solidão dos seus dias: lava, quara, engoma, passa. Meu Deus, perdão. Não sou Cristo, pai, e até a ele lhe foi dado o direito da dúvida. Me mato? Não!! Por quê?! Porque Aderbal segura sempre a minha mão.

O jovem chegou em casa todo assanhado, Viu coisa boa: O passarinho verde diria o meu pai. “Conheci o Niemeyer, mãe. Entrei sem querer na sala dos professores lá na faculdade. Me mandou sentar. Disse a ele que queria fazer arquitetura. Ele me deu a maior força e me aconselhou a estudar sempre e muito se quisesse ser muito mais que um mestre-de-obras. Amanhã é o dia do tira-teima, volto aqui para dar um abraço no senhor.” Definitivamente, a mãe de Aderbal não sabia que raio de exame era aquele. O garoto explicou: “Mãe, tem gente pra burro querendo entrar na universidade e poucas vagas, daí que eles fazem um concurso para ver quem sabe mais. Esse concurso se chama vestibular.”

Hoje, Aderbal vai para a última prova. Passou a noite acordado, roeu todas as unhas, cochilou quando não podia sequer fechar os olhos Saiu de casa ventando. O tiquetaque do relógio não parava. O que parou foi o ônibus, na região de Cruzes. O chofer disse que era “coisa do giglê, dentro do carburador.” O ônibus seguiu viagem quando já eram 6h47. O Ford do ano de 52 vai lentamente. Sem dinheiro, o menino tinha que suportar aquele desgraçado de ônibus. Uma coisa era o mais provável (está difícil dar tempo), outra, era apostar no negativo (‘É matematicamente impossível dar tempo’). Aderbal preferiu largar o ônibus e tomar um táxi. Manda o chofer correr o máximo.

A mãe de Aderbal — o garoto se lembra — fez o que pôde: passou o café às pressas, deu a ele um pão duro para roer no caminho, e, em cinco minutos o filho já arrastava a mochila que o desequilibrava ao sobrar e a faltar peso nos ombros. Isso o fez lembrar de quando estudou Momento em Descritiva. Está em cima da hora. Claro que não vai dar tempo. E logo Aderbal que foi um dos primeiros a se inscrever (cadeira 4, sala 16, 0006). Não adiantou nada. Meu deus que desespero. Não! Que ódio, senhor! Pedi ajuda ao céu e até ao leviatã. Rezei para todos os santos. Bastava uma ordem sua — chorava. Esperei o tempo todo. Bastava uma ordem divina para que os relógios parassem.

Em frente à universidade um homem arrasta um pesado portão de ferro. O garoto abre a porta do táxi, larga a mochila e dispara em uma olímpica carreira. A prova começou às 7h e são 7h3min. O motorista grita pelo seu dinheiro. O taxista agarra o garoto dá-lhe socos na cara e pelo corpo todo. Aderbal se desvencilha e sai atropelando os familiares aglomerados na espera dos candidatos que daqui a algum tempo estarão saindo. O reitor veio ver que confusão era aquela. Aderbal pediu para falar. Disse que morava longe, muito longe, que o ônibus quebrou no caminho, disse ainda que sem dinheiro pegou um táxi. Por isso o homem me bateu muito”. O reitor disse que lei é lei e assunto encerrado. “Se eu abrir uma exceção para você tenho que abrir para todos.” “Meu caso é diferente seu reitor, ainda não saiu ninguém lá de dentro então não tem problema algum.” “É como eu disse: lei é lei e assunto encerrado.” Aderbal tem ódio de todo mundo, quer que todos se fodam. Grita para ofender: reitor filho da puta, guardinha de merda. Ele pula o portão. O reitor não deixa, empurra o garoto de volta. Aderbal tem certeza: tudo perdido por quatro minutos.

Aos prantos, o garoto pede perdão a santa Teresinha, sua santa. Jura para ela que há meses não peca. Está mais puro do que muitos santos. Todos os domingos estou na igreja recebendo aulas de órgão. Mesmo assim, senhor, por quatro minutos estou reprovado. Não é justo. Ou então, por questão de justiça, é correto, senhor, apelar para todas as forças. Caminhou na direção do segurança e desafiou: duvido que você atire, guardinha de merda. Disse e, como um felino, jogou-se contra o guarda. Os dois lutaram pela arma. Ouviu-se um tiro. Correria. Pedidos aos céus e ao leviatã. Dos primeiros nada veio. Do rei das águas, do cara de crocodilo, do dominador do tempo, do meio demônio, do leviatã, daí veio — o tiro que matou alguém. Da prova que foi ou não feita. Do curso que aconteceu ou não. Naquela região pobre as coisas simplesmente acontecem. E aconteceu a história de um arquiteto que, ainda criança, matou um guarda com ajuda do leviatã. Dizem que o mundo ficou assim, não por causa do maldito, mas dos homens que aqui reinaram. ”





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