O AMULETO DE SARAH
Quando ainda pequenino
Para minha amada Sarah
Escrevi este versinho
Que dizia bem assim:
“ Meleca, melequinha
Ao nascer eras verdinha
E foi mudando de cor.
Não tinhas forma nem graça
E para dar-te
Existência nobre
Foi então que decidi
Transformar-te em bolinha.
Te apertei entre os dedinhos
Girando como ciranda
Até ficar igualzinha
A uma pequena pérola .
Lá no banco da escola
Onde senta a doce Sarah,
Grudei-te lá por debaixo
Como amuleto ou talismã
Pra proteger meu amor.
(Alberto Santos)
Minha pequena Sarah
Já se vão 48 anos desde que a vi pela última vez. Era véspera
de Natal do ano de 67.
Sarah, uma judia que roubou meu coração.
Não sei que fim levou. Se ainda é viva ou não.
A conheci em julho de 67, bem no início das férias escolares.
Morávamos na mesma rua, em Olaria, subúrbio carioca. Nesse
tempo eu era meio esquisitão. Não tinha amigos na escola e ainda não havia me
enturmada com os meninos da rua para jogar bola. Era o único garoto da rua que
soltava pipa da janela de um apartamento.
Foi quando conheci aquela menina magrela, que morava no
último prédio da rua. A corrente da minha bicicleta tinha enganchado e eu ali
sem saber como soltá-la. A tal menina saiu do prédio com um alicate na mão e me
mostrou como fazer. Fiquei muito agradecido, e voltei para casa.
Não demorou, e alguns dias depois ela me abordou na calçada
perguntando se podia ir até o meu prédio e se eu queria ser seu amigo:
- Sabe o que é, disse ela... não tenho amigas onde moro.
Ninguém lá do prédio gosta de nós, porque somos judeus. Por isso minha mãe não
deixa eu ficar na rua. Mas se eu arrumar um amigo, disser que é pra estudar
junto, fazer trabalho da escola, ela vai deixar. Lá, a gente inventa o que
fazer.
O perfil de Sarah se encaixava com o meu: solitária, sem
amigos e presa dentro de um apartamento.
Aceitei sua amizade na hora. Marcamos sua ida a meu prédio
para a manhã seguinte
E o tal dia chegou. Sarah trazia uma bolsa cheia de
cacarecos, livros, revistas e outras bugingangas. O problema agora era saber
onde ficaríamos.
Na minha casa não dava, pois meus irmãos ficavam no quarto
estudando. No jardim do prédio também não pois era estação chuvosa. Na escada a
síndica não permitia.
Só havia um local para nos reunir : a casa de máquinas.
Ficava debaixo do vão da escada do 1º andar. Tratava-se de um
cubículo escuro, onde havia a bomba que puxava água da cisterna. Devia medir
mais ou menos 1,5 x 2,00. Era o suficiente para caber nós dois e as bugingangas
de Sarah. Era o local mais conveniente, pois a bomba era acionada apenas uma
vez ao dia, pontualmente às 7 da manhã. Sabia que ninguém iria nos incomodar.
No inverno de 67, eu contava com 11 anos e 3 meses, enquanto
Sarah acabara de completar doze. Nessa faixa etária, as meninas costumam ser
mais maduras do que os meninos. Sabem mais sobre questões dos adultos, conhecem
mais sobre o seu próprio corpo em função das mudanças que ocorrem nessa fase da
vida.
Meninos não! São imaturos, mais antenados na vida ao livre,
nas brincadeiras de rua. Nas questões de adultos, limitam-se a desfolhar
revistinhas no banheiro, param por aí.
Sarah tinha a mesma altura que eu, cerca de 1,48. Era bem
magra, do tipo que não atraía a atenção de ninguém, exceto pelos olhos
esverdeados e os longos cabelos enchacheados, de um ruivo bem pronunciado. No
nariz, algumas pintinhas de ferrugem. Trajava sempre vestidinhos de algodão,
discretíssimos.
Sarah era a personificação daquela que é sempre a última a ser
escolhida.
Eu também não era nenhuma Brastemp. Tinha cara de babaca,
ainda era baixinho, e o corte de cabelo ridículo.
Enfim, éramos iguais, isto é, aparentemente.
Na casa de máquinas havia uma lâmpada, daquelas bem
fraquinhas, tipo 12 W. Servia apenas para quebrar a escuridão no cubículo.
Sentávamos no chão e Sarah começava a ler as matérias das
revistas. Às vezes eram livros com belas estampas do mundo judeu. Outras, eram
almanaques com piadas, historinhas, passatempos, cruzadas. Tinham também álbuns
de família.
Tudo o que fazíamos ali , era iniciativa dela.
Mudava o tipo de leitura ou passatempo. Só não mudava uma
coisa: Sarah fazia questão de ficar sentada coladinha a mim.
Tinha dias em que ela tirava para contar o sofrimento que
seus parentes passaram no período da guerra. Encostava a cabeça no meu ombro, e
por vezes chorava.
Para mim tudo aquilo era novo, me fascinava. Principalmente
quando ela me abraçava por trás e começava a cantar em hebraico antigo. Eu
viajava. Era simplismente divino !
Eu sei que quanto mais nos encontrávamos mais intensa era a
amizade. O contato físico, de ficar colado, de mãos dadas e de abraçar
tornou-se regra.
No mês seguinte veio a novidade. Sarah sumiu por uns dias.
Fiquei indócil e na volta da escola fui procurá-la. Disse que não podia sair.
Eu insisti. Disse que não. Aí eu apelei : se você não for hoje não precisa ir
nunca mais.
Passei um bom tempo na janela esperando ela despontar na
esquina. Ela enfim deu o ar da graça já no fim da tarde. Fomos para o cubículo,
sentamos no chão como de costume, só que ela ficou meio afastada. Tentei me
aproximar, Sarah disse não, “ não, eu estou suja” !
Eu não entendi nada, e ela foi explicando:
- é a primeira vez que eu menstruo. Voce não pode tocar em
mim, o sangue é impuro.
Eu continuei não entendendo nada, e disse: que sangue ?
Ela levantou um pouquinho do vestido e mostrou a peça debaixo
manchada.
Eu ainda era muito babaca para essas coisas, chucro. Na
escola havia aprendido o que era cromossomo, o X, o Y, a história da
fecundação, isso eu conhecia. O raio é que eu não sabia que a mulher sangra
todo mês. Tão chucro que perguntei se ela tinha se machucado.
Aí ela me contou tudo, como acontece, e tal. Depois explicou
sobre a tradição.
No finalzinho eu mandei a tradição dela pra casa do caralho e
abracei ela por trás. Acabou aceitando o abraço: fazia parte da nossa regra o
contato físico.
Acho que esse episódio era o que faltava para Sarah
desabrochar o seu lado fogoso. Mostrar a calcinha já denotava uma certa
intimidade e confiança.
Depois que terminou seu ciclo, Sarah me veio com umas ideias
pra lá de diferentes. Brincadeiras típicas de crianças de 8 ou 9 anos. Nós
ainda éramos impúberes, porém não mais crianças. Doze anos já é
pré-adolescencia, a coisa já descamba para a brincadeira de girar a garrafa, ou
salada mista.
Sarah não. Inventou de brincarmos de médico e paciente.
Acabei gostando da ideia. Medir pressão, coração, examinar
ouvido, garganta. Tudo dentro da normalidade, sem tirar a roupa. Pela primeira
vez eu tomei a iniciativa de inventar alguma coisa : a medição de peso. De
resto tudo era ideia dela.
Todo dia era dia de consulta e medição de peso. Ela adorava a
medição ! Mas tudo dentro dos limites. No entanto, qualquer que fosse a
brincadeira, sempre, levava a um lugar-comum, que era a necessidade do contato
físico. Encostar, tocar já era mais que regra. Tornara-se algo imprescindível.
Até que em um certa ocasião, Sarah me apareceu com uma
lanterna dizendo que era dia de exame geral, e me passou todas as instruções :
para onde direcionar o foco da lanterna, onde tocar, apertar e apalpar para
encontrar “algum caroço”.
Nesse dia Sarah ficou no pêlo. Tirou tudo.
Foi então que eu descobri que ela não era simplismente uma
magrela.
Ela era é linda de mais.
O seu desenho, vou descrever. Feche os olhos e imagine:
Sem dúvidas, magérrima. Voce só encontrava alguma carne bem
consistente no bumbum, nas coxas e na panturrilha. O resto do corpo era bem
magro, ausência quase total de massa corporal. Seus peitinhos, ainda em
formação, mais pareciam duas empadinhas enfeitadas por uma azeitona. A lanterna
percorreu todo o seu corpo, frente e verso. À medida que o foco de luz
desbravava aquele corpinho , ia revelando onde residia sua beleza : suas
sardas, aquelas pintinhas marronzinhas que cobriam sua pele em várias partes do
corpo, distribuídas uniformemente.
O desenho que a cobria, emprestava sensualidade aquele corpo
quase esquelético.
Atrás cobriam seus ombros literalmente, em ambos os lados .
Uma mancha com várias sardas cobriam a região sacro-lombar, um pouco acima do
cofrinho.
Na frente, além das poucas pintinhas no nariz, outras poucas
no dorso das mãos, na virilha, e no meio do peito se abrindo como um leque. Ao
redor dos mamilos as pintinhas eram escassas.
Você olhava para Sarah e parecia estar olhando para uma
modelo em papel marmorizado, tal era o efeito visual. Era como se algum artista
plástico, com a ponta de um pincel fino fosse chamuscando tinta nas partes mais
adequadas de uma tela.
Sarah era uma pintura que acabara de ser descoberta.
Como ela gostasse muito de minha invenção, fiz questão de
fazer-lhe a medição de peso, no pêlo. Era assim:
- Sarah dobrava os braços bem firme e os mantinha colados ao
corpo. Eu vinha e encaixava minhas mãos por baixo dos seus cotovelos. Flexiona
meus joelhos para dar impulso, e levantava Sarah o mais que pudesse. Geralmente
, suportava o peso até quando sua cintura ficava no nível da minha cabeça. À
medida que perdia a força no braço, deixava seu corpo deslizar sobre mim. Na
altura exata, abraçava sua cintura.
Na medição desse dia rolou o primeiro beijo, e foi muito bom.
Depois disso Sarah incrementou a coisa. Inseriu o
“termômetro” na brincadeira do exame, mas nunca avançamos o sinal.
Passamos a ficar pelados por horas dentro da casa de máquinas
Nos faltou tempo para fecharmos questão. Creio que se
ficássemos mais seis meses brincando no cubículo, teria dado o maior bololô.
Ás vésperas do Natal, Sarah me trouxe uma má notícia : a
família estava de viagem marcada para Israel. Iam morar em um kibutz em um dos
territórios ocupados.
Choramos muito e ficamos ali abraçadinhos dentro da casa de
maquinas por quase uma hora.
Em janeiro e fevereiro de 68, enviei duas cartas para ela,
que as respondeu. Depois, enviei outras, todas ficaram sem resposta. Perdemos o
contato.
Toda vez que eu mudava de residência, envia uma carta
informando o novo endereço. Enviei a última em 1981 .
Presumo que deva ter morrido ainda menina, vítima daqueles
confrontos sangrentos entre árabes e israelenses, no ano de 68.
Esteja onde estiver, minha pequena Sarah carrega consigo um
pedaço do meu coração