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segunda-feira, 10 de abril de 2017

O ESPELHO DOS LOUCOS



            O ESPELHO DOS LOUCOS



Os espelhos não guardam o passado.
Projetam dialeticamente realidades mortas,
Que se sucedem umas às outras, infinitamente.
Tudo muda a cada milionésima fração do tempo....
Assim, busco no espelho minha outra realidade,
a recidiva,
que ainda está por vir,
se me houver amanhã.
Lanço um languido olhar ictérico
sobre a imensidão da superfície fria do espelho .
A imagem é turva,
nada revela.
Uma densa camada de poeira se mistura a inúmeras gotículas de umidade
deixadas pela madrugada que ora finda.
Passo meus dedos sobre o espelho
tentando remove-las com um traço.
Do embornal retiro um pequeno frasco
de precioso éter,
que sorvo com sofreguidão.
Em instantes, sinto-me tomado por aquela lucidez
tão própria aos loucos ,
A lucidez de enxergar através de,
Onde reside a essência das coisas.
Volto o olhar ao espelho,
e naquele despretensioso traço rascunhado sobre o pó,
vejo uma estrada e em sua silhueta mergulho.
É a velha e longa estrada por mim já percorrida em anos.
Olho para baixo.
Sob meus calcanhares brota um tênue linha
qual divisa entre a estrada e um bárbaro abismo.
Deste são feitos passado e breu,
não comportam no espelho.
Tragada em sua maior extensão,
a estrada, hoje breve travessia, tem suas premissas:
Não há chegadas nem partidas,
tudo é meio do caminho.
Sem retornos, variantes ou marginais,
segue em uma única direção,
que desemboca em meu infinito singular.
Olho para trás e me despeço,
tão somente , daquilo que ficou por fazer.
Como Quixote solitário,
sigo a frente de meu próprio prestito.
Não trago bagagem de mão, diplomas ou testamentos.
Em meu comboio , trago apenas a humanidade inteira,
dentro de um enorme saco de aninhagem,
com a boca amarrada em nó de marinheiro.
Faz calor no altiplano,
E o sol insiste em irromper-se em feixes,
fazendo fendas entre as nuvens
num céu todo em gris.
Frondosas tamarineiras sombreiam com generosidade
todo o percurso que me resta.
Seus frutos caídos ao solo, formando um belo tapete,
serve agora como lauto banquete,
disputado por tejús, formigões e pequenos insetos alados.
Um acentuado olor acri-doce invade a vereda.
À beira do caminho,
Antoninos pudicos curvam-se elogiosamente enquanto passo.
Os abençoo, e tal como eles sigo descalço.
Busco alcançar o pontilhão por onde passa o rio.
Vejo apenas um ínfimo filete d’agua,
como resquício da ação humana.
Resiste em seu percurso sinuoso,
tentando encher com esforço ergúleo,
os pequenos sulcos entre as pedras,
Na ânsia louca, quase que poética
de reencontrar-se com o mar.
Mais adiante , na margem esquerda da travessia,
floresce uma comunidade de fazedores de coisas.
Tudo nela funciona em regime de escambo.
O fazedor de licores, a cigana, o moleque do amendoim torradinho,
o vassoureiro, a prostituta, o florista, a baiana do acarajé,
o amolador de facas e a cerzideira.
Dentre eles, a figura singular de um velhinho ,
que se propõe a trocar abraços apenas.
Todos me oferecem graciosamente seus produtos e serviços.
Ah, se o tempo não me fosse tão exíguo, aceita-los-ia, a todos.
Não me permito tardar na fruição de tantos mimos e préstimos.
Educadamente aceito apenas tres :
- o abraço do velhinho, o beijo da prostituta e um trago de genipapo.
Sigo em busca do destino que me foi reservado,
Até que repentinamente o cortejo é interrompido aos berros:
Extra, extra !
Um menino-velho, lá das bandas do faz-tudo,
Traz nas mãos seu fardo de jornais com as notícias de amanhã.
Pego um exemplar ainda cheirando a tinta.
Passo a vista no folhetim que traz como manchete,
Um grave acidente envolvendo um espelho
que partiu-se em milhares de pedaços.
Ensejaria ser o meu ?
Porque ocupar-me com dúvidas se é tácito não haver retorno?
Aperto o passo.
Lá adiante, já no declive,
a ponta de um cruzeiro se torna visível.
A cada passo meu, o cruzeiro se agiganta.
Ouço um som bem familiar.
Tibum, bum-bum. Popororó, pom-pom.
É a galante retreta que lá do alto do coreto
A tocar meu réquiem.
Retribuo a deferência timidamente,
entoando um bravíssimo tra-la-lá.
Há rostos apinhados junto à servidão pública.
São os velhos abutres de sempre : rastaquores de todo tipo,
Mercadores de almas, palaciannos, falsos profetas, cafetões da eucaristia,
Proxenetas ,vendedores de indulgencias, laia da pior espécie.
Aguardam apenas as dez badaladas da sineta,
para abrirem a banca de negócios e tratativas.
Ênclises e mesóclises que os partam !
Desviei-me da escória, atravessando uma enorme plantação de girassóis híbridos,
cor de carmim.
Subitamente a tarde cai e o céu logo escurece.
Um velho barnabé se apressa em direção ao cruzeiro,
Onde afixa uma enorme tabuleta, com os seguintes dizeres:
- Sine die. Grato !
Não me apercebera que a hora do Angelus chegara,
e que por força de leis maiores,
ficam suspensas todas as cerimônias rituais, prestitos e despedidas,
até que a Alba ressurja no horizonte anunciando o dia novo.
Derribei por terra todo o esforço de uma jornada inteira, naquela minúscula fração de segundos desperdiçada com os prazeres d’alma: o abraço, o beijo e o licor.
Agora, o pérfido destino lança-me à própria sorte, impondo contrariar a premissa original, condenando-me a retornar para a realidade morta .
A esta altura o éter evaporarasse, e seu efeito dissipado.
Possuído pela ira dos deuses , lanço mão de uma marreta,
desferindo contundentes golpes no espelho,
corroborando com o noticiário do infante redator.
No meu hoje sigo metastasiando a vida,
Enquanto assim ela o permitir.
Como o filete d’água que acredita em seu reencontro com o mar,
Guardo certeza que n’algum desses dias de ventura plena,
percorrerei os últimos passos que me separam de meu infinito singular,
terra onde habitam as memórias,
Lugar-comum em que os espelhos não tem aço 
.
(AS/2017)
 



5 comentários:

  1. Parabéns, Alberto! Seu texto é muito bom. Eu não sabia da existência do Blog. Grande abraço, Sérgio Condé.

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  2. Parabéns, Alberto! Seu texto é muito bom. Eu não sabia da existência do Blog. Grande abraço, Sérgio Condé.

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  3. Belo texto, Alberto! Eu não conhecia seu blog. Grande abraço, Sérgio Conde.

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  4. Belo texto, Alberto! Eu não conhecia seu blog. Grande abraço, Sérgio Conde.

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