A traição humana (um conto de Natal - texto adaptado)
por Alberto Santos
Ainda em tenra idade, Ismenia
havia sido arrancada do seio de sua família. Foi levada para um pequeno sítio
lá pelos lados do Tatu, subida do Soarinho. Na casa habitavam apenas João
Catipó, antigo plantador de bananas da região e sua mãe, Dona Emerenciana,
quase centenária. Do casebre, de pau-a-pique, fluía uma fumaça densa da pequena
estufa onde d.Emerenciana defumava as bananas
Eram de pouca fala. Para ser mais
preciso, anti-sociáveis.
E assim, Ismenia foi criada no
mais absoluto isolamento, confinada naquele ambiente rude , como uma estranha.
Sua alimentação era precária, quase sempre repetida a mesma dieta: mandioca,
banana e couve. Vez por outra abóboras, colhidas no próprio quintal.
Longe dos irmãos e sem ter com
quem brincar, limitava-se a correr de um lado a outro, em meio às galinhas
criadas no terreiro.
Felicidade mesmo eram os dias de
chuva, frequentes nessa região serrana de Macacu. Era o dia em que Ismenia
corria pelo prado, lançando-se nas enormes piscinas formadas por aquela
abençoada torrente d’água que fertilizava o solo.
Eram nestes dias que se podia
vislumbrar toda a beleza de sua tez
rósea .
Passara o tempo e Ismenia já era
uma mocinha , naquele verão de 1959. Mas quis a natureza madrasta que não viesse a conhecer seu par.
Pois neste dezembro fatídico seu
destino estaria traçado, justamente pelo espírito que contagia corações e
mentes em torno das comemorações natalícias do deus-menino.
A casa tão pouco frequentada,
passou a receber a visita de estranhos que confabulavam com João Catipó.
Pareciam nunca chegar a um consenso. O mais intrigante para Ismenia, é que
todos esses “visitantes” de longe a observavam, faziam gestos e sinais.
Não tardou para que Ismenia fosse
levada até a uma carroça estacionada diante da cancela. Nenhuma bagagem,
nenhuma despedida, nenhum afeto. Partiu !
Dali seguiu viagem serra abaixo.
O caminho de burro a percorrer era tortuoso, mas para Ismenia, que jamais saíra
a passeio, era pura curiosidade. Novas paisagens !
Na descida, o condutor da carroça
ia cantarolando ... “ bate o sino pequenino, sino de Belém, já nasceu o
deus-menino para o nosso bem...” Chamava-se Antonio Briu.
Pelo trajeto, parecendo antever
sua própria sorte, os olhos de Ismenia marejaram de lágrimas. Como que uma voz
interior a lhe dizer: “ Tu nunca mais verás o verde prado, as nostálgicas
montanhas a que a longínqua perspectiva empresta tão doces tonalidades
azuladas nos últimos planos da Serra do
Soarinho, onde correste feliz sob a chuva, onde nem siquer tivesses tempo de
experimentar as primeiras agri-doces volúpias do primero amor".
Sim: ela era virgem !
Já era noitinha quando chegaram à
nova casa, nas Granadas... Logo, serviram-lhe o que comer. A refeição era farta,
assim como nos dias que se seguiram: arroz, feijão, angu,frango, legumes. Pela
primeira vez na vida Ismenia era tratada com dignidade. Recebeu afeto e por
vezes Antonio a acariciou.
Quanta perfídia anima a alma de
uma criatura humana !
No céu mal encoberto, as nuvens corriam de vez em quando para a
linha do horizonte, como se fugissem do carinho abrazador do sol, deste sol de
dezembro.
O que papai Noel reservaria para
Ismenia? Qual seria o primeiro presente de sua vida ?
Eram vinte e quatro, e o dia amanhecera
. Antonio, o pérfido, o sedutor, fora
visitar-lhe em seu aposento bem cedinho.
Trazia nãos mãos um cordel forte
e resistente.
Aproximara-se ...
E de repene subjugara-a, lhe
amarrara pés e mãos, arrastando-a até bem próximo da cozinha.
Aí , apanhando o pontiagudo instrumento
de seu suplício, lh’o enterrou várias vezes na carótida. Ouviu-se a quase uma
légua de distancia os gritos lancinantes de Ismenia.
E abaixando-se, Antonio arrancou
a pontiaguda faca do pescoço de Ismenia
ainda arquejante, e contemplou-a com um sorriso frio e cruel.
Um último jorro de sangue
esguichou...
A pobre Ismenia escabuchou,... a
cabeça pendeu para a esquerda, e, com a boca contraída por um rito de suprema
dor, fez um esforço extremo e inútil, desesperado e impotente ...
Os olhos vítreos pareciam
contemplar além, muito longe , a última e dolorosa visão da vida...
Dir-se-ia que toda aquela
crueldade daqueles gestos, daquela cena, lhe havia ficado indelevelmente
estereotipada na retina morta.
Na noite deste mesmo dia, o de
Natal, ela, Ismenia, voltou coberta por um folha de papel manteiga, ornada com
rodelas de limão, azeitonas e raminhos de agrião- e figurava como prato central
à mesa da família, na tradicional ceia. À meia-noite, na hora do galo, era devorada compulsivamente por seu pérfido
algoz, Antônio Briu, que fez uma oração fúnebre de dar inveja a Bossuet. " Habent sua fata " (Terentianus Maurus)
Belo texto! Parabéns Alberto!
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