Vovó Elisiaria e a escravidão em Papucaia
(escravidão em Macacú, uma história ainda não contada)
( por Alberto Santos - 09/01/2015)
(escravidão em Macacú, uma história ainda não contada)
( por Alberto Santos - 09/01/2015)
Vovó Elisiaria - 1936
Se nos faltavam um rosto e uma
história para falar sobre a escravidão
em Cachoeiras de Macacú, esse problema está equacionado. Agora
precisarei da colaboração generosa do Padre Gilmar, de Japuhyba, para
melhor documentar este que até agora é o único registro oral, transcrito, de alguém que
nasceu cativo e que testemunhou o sofrimento de seu povo aqui em Macacú.
Ela nasceu em ventre cativo na Bahia, foi
escrava em Papucaia mas morreu em Oswaldo Cruz....
"Ah , minha Portela, quando vi você
passar "
Sem esconder sua religiosidade, Elisiaria
Maria da Conceição vestia seu colar de búzios e vários idés no pulso. Era devota de Nosso Senhor do Bonfim e também dos orixás.
Eis aí, Vovó Elisiaria , que aos
116 anos acabara de sofrer o infortúnio com a perda de seu filho caçula , Casimiro - de 78 aninhos , último que restara de sua numerosa prole.
Não fosse seu amor de mãe, hoje não conheceríamos sua história. Tangida ela dor da perda do filho amado, ansiava obter uma foto sua, pois não mais veria. Uma última imagem para guardar e acalentar seu pranto.
E a partir dessa sua busca foi descoberta .
Lamentava-se :
" Era com ele que eu contava para me enterrar, ... e o meu filho morre... "
Casimiro Elysiario, ou " velho Casimiro" como era chamado , morava junto ao Bico do Papagaio, no belo bairro do Grajaú, onde era muito popular. O ex-escravo, mantinha uma horta e um casebre , de onde ao entardecer, todos no bairro viam reluzir a sua lamparina, lá no alto da floresta.
E assim Casimiro deixou órfã sua mãe.
Possivelmente , Elisiaria seria a mulher mais longeva do Brasil naqueles anos de 30. ´Tão longeva que viu cada um de seus filhos partir na sua frente. Elisiaria era também muito popular, da Mangueira à Madureira, todos a conheciam como a mulher mais velha da cidade.
vovó Elisiaria Maria da Conceição acompanhada da neta
(Oswaldo Cruz/Rio - 1936)
Apesar da idade avançada, vovó Elisiaria era dotada de uma memória privilegiada, e deixou para a posteridade um registro único, que embora curto, nos revela toda a beleza de sua africanidade .
Aos 7 de setembro de 1820, nascia Elisiaria, porém ‘o seu grito’ não foi de independencia, mas de dor, um lamento : viera ao mundo para sofrer no corpo e n'alma o iníquo sistema da escravidão.
Portanto, aos 2 anos de idade viu nascer um Brasil independente do Império português;
Aos 15 viu seu povo se insurgir na Revolta dos Malês;
viu na Sabinada fenecer duas mil almas , além de muito bate-cú;
Aos 20 já no Rio ainda pegou as febres cíclicas do Macacu;
viu bem antes da República chegar a tal “Abolição”, que de pouco lhe adiantara;
Aos 90 viu João Candido bailar em águas da Guanabara;
Viu quatro anos mais tarde , o Flamengo campeão.
Viu Getúlio dar o golpe, em 35 a Insurreição.
Perguntada sobre suas origens, alegou que a memória havia de lhe falhar , "... pois a idade tem puxado muito por ela."
E foi disparando:
......... “ Nasci em São Salvador, e fui batizada na Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, sendo filha de dois escravos, Pai Bastiao e Mãe Justina, vindos da costa da África, trazidos pelos negreiros. Casei com Justino José de Souza, com quem tive doze filhos, todos quais já morreram. De minha descendência possuo agora somente seis netos e muitos tataranetos. ”
Da Bahia veio com seu marido e filhos , vendidos todos aqui no Rio,para a senzala do Barão de Pirassununga*:
“ ... Meu sinhô o barão, casado com sinhá “deOlinda” (Luisa) , era um homem muito rico e tinha muitas fazendas lá para as bandas do rio das Pedras . Eram 4 ( quatro ) : a do rio das Pedras, a "Papucaia", a Jaguary e a da Ribeira. O pai dele se chama Henrique e os irmãos sinhô Antonio, Raymundo, Quincas e Joaquinzinho.
Casario onde residiu Elisiaria, fazenda Soarinho
(o casario , em péssimo estado de conservação, pertence hoje ao espólio de Rodolfo Pimenta, ex-advogado do STR/Macacu)
“ ... Meu sinhô o barão, casado com sinhá “deOlinda” (Luisa) , era um homem muito rico e tinha muitas fazendas lá para as bandas do rio das Pedras . Eram 4 ( quatro ) : a do rio das Pedras, a "Papucaia", a Jaguary e a da Ribeira. O pai dele se chama Henrique e os irmãos sinhô Antonio, Raymundo, Quincas e Joaquinzinho.
Casario onde residiu Elisiaria, fazenda Soarinho
(o casario , em péssimo estado de conservação, pertence hoje ao espólio de Rodolfo Pimenta, ex-advogado do STR/Macacu)
Sobre sua condição de escrava dizia:
“ Naquele tempo tinha sinhô bom e sinhô ruim. O meu , graças a Deus e ao Senhor do Bonfim, era um “bocadinho” bom. Eu era mucama, ama-de-leite, vivia dentro da casa grande, com "tratamento" . Criei os filhos do sinhô : dr. Avelar, Isaías, Carola , Rosita e os filhos de d. Rocheta, Maria da Glória e Rodolfo.
Quando veio a lei da liberdade, a gente estava na roça. Com a morte do barão os escravos foram vendidos para Minas, no Parahyba.”
Quando perguntada se outros escravos eram maltratados, respondeu:
“ só quando era preciso. O feitor, aquele nem gostava de ver pancada. Uma senhora quando estava grávida não ia pra roça: ia para o engenho de plantar café. Os feitores eram também escravos : pai Joaquim e Manoel caboclo.
Ao tempo da abolição, o Justino, meu marido, não queria ficar lá, e todos se retiraram da fazenda. Não dava gosto não senhor. A gente fazia uma roça muito bonita e os fazendeiros tomavam e botavam gado pra comer a plantação. A gente então com raiva saiu.
Os fazendeiros não queriam cumprir a lei que o governo botou (Abolição) e brigaram. Houve barulho. E a metade dos fazendeiros morreram apaixonados de raiva .”
E ao comentar o que mudou com a abolição, retrucou : “ de primeiro havia fartura, mas " se trabalhava muito ". Depois do Imperador é uma coisa que a gente nem calcula. Ficou-se livre, mas parece que a vida ficou pior. ”
Tia Maria do Jongo, da Serrinha
E continuando, a centenária “desmemoriada”
disse: “ Quando cheguei no Rio, ali no Estácio de Sá
era tudo mangue d’água. Depois é que aterraram e fizeram as casas da Cidade
Nova.... lembro só um pouquinho da guerra do Sul, e a guerra de apagar lampião .
O resto a idade apagou. Não posso mais nem escrever. ”
Apesar da idade bem avançada,
vovó Elisiaria mantinha tempera rija, com uma compleiçao robusta , sadia, e se
não fosse o peso dos anos, tornando-a tropega, nada denunciaria a passagem
implacável do tempo. Sentia dores nas articulações e a vista começando a se apagar. E por isso às vezes foge-lhe o
animo.
Mas, não obstante, a memória
castigada pelo trabalho, por mais de um século, ElisiarIa em um retorno aos seus tempos de cabocla
dengosa, bamboleando no terreiro , relembrou em sua toada peculiar uma pequena
cantiga :
Gente quero ver
Cangô , sinhá
Olha a barata quero vê
Subindo na parede
Yá-Yá
E depois, uma boa bebida
Batuque na cozinha
O sinhô não quer
Crioula não faz assim
Sapateando
E cantando
Odé !
Creio que viveu seus últimos dias na pequena casinha de subúrbio da Rua Cataguazes (que já foi demolida e hoje dá lugar à uma pracinha, esq. c/rua Vicência), mas certamente tetranetos deram continuidade à sua seara.
E assim , Elisiaria registra sua existência profícua nas páginas da internet.
Uma pena que já partiu
faz muito tempo !
Queria muito te-la conhecido. Ouvi-la entoando o jongo, e a contar histórias de como era a Papucaia do séc XIX e de como seu povo construiu esta Nação chamada Brasil .
Mas prometo saber com quantos anos mais ela partiu, ora se não vou !
Alberto Santos
Fonte: xyz94fze
antiga senzala da Fazenda Papucaia, atual E.M.Mal.Rondon
( provavelmente, o marido e filhos d Elisiaria viveram aqui )
(↘↘↘↘↘↘
(casas geminadas ao fundo)
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