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domingo, 24 de novembro de 2013

A CAÇADA (à Marighela)

                                             

                                               A CAÇADA  (por Osvaldo Peralva-Veja)

                                                        20 de novembro de 1968 -A caçada 
O General França comanda milhares de policiais que em todo País estão à procura
do líder comunista Marighela.
De pé diante de um balcão de botequim no Posto Quatro de Copacabana, tomando batida de limão, Carlos Marighela prestava o seu depoimento: "A seleção brasileira de futebol este ano está muito fraquinha". Não muitos dias depois, começava a caça nacional ao homem robusto de pele morena e cabelo claro já grisalho, que diariamente tomava três horas de banho de sol e mar, comia cachorro-quente nas praias cariocas e conversava com crianças. Sempre tendo à mão ou sobre mesinhas de bar um copo de batida - sua bebida predileta -, vindo depois a laranjada e a água de côco-da-baía. Ainda não tinha sido preso o estudante Paulo César Bezerra, que o aponta como chefe nacional de uma organização subversiva que anda assaltando bancos. E MarigheIa, gastando o dinheiro que mal e mal tem conseguido aqui e ali, comprava cigarros baratos de fumo forte e pagava o cafezinho para os antigos companheiros de lutas no Rio. Nas suas conversas, misturava elogios aos luares e aos cantadores da feira da Bahia com palavrões sobre os mais variados assuntos. Havia também discussões sobre o tema constante de todas as conversas de botequim: "0 ataque da seleção de Aimoré não está sendo nada objetivo", insistia Marighela.

A LOURA INEVITÁVEL - Desde a semana passada, Marighela não pode dar mais seus passeios entre a areia e o asfalto de Copacabana, agora ocupada por mais de 2 mil policiais à sua procura. Pela primeira vez um secretário da Segurança estadual - o General Luís França, da Guanabara - comanda uma investigação nacional, com carta branca do Marechal Costa e Silva para usar agentes do SNI e da Polícia Federal, além de policiais de todos os Estados, todos à caça de ladrões subversivos. Portos, aeroportos, estradas e esquinas de todo o País estão sendo cuidadosamente vigiados e Marighela - que até há não muitos dias andava de calção pelas praias do Rio ou de calça e camisa pela Avenida Paulista, em São Paulo - desapareceu. Na novela desta caçada não falta nada do que compõe um bom programa de televisão. Há assaltos espetaculares de homens com metralhadoras em bancos de todo o País: há intrigas familiares - o principal acusador, o estudante Paulo César, filho de um falecido militante comunista, é namorado da filha de um tenente-coronel que já prestou serviços ao Serviço Nacional de Informações. Não faltam aventuras amorosas - a mãe de Paulo César seria amante de Carlos Marighela, homem de 57 anos. Há também a inevitável loura de 35 anos, suposta companheira de Marighela nos amores e nos assaltos, que seria estudante de Medicina no Ceará ou aluna de Filosofia em São Paulo, mas sempre é apontada como loura de franjinhas. Ela atende pelo nome de Sílvia e usa luvas cirúrgicas quando carrega metralhadoras para assaltar bancos.
UM BOM PERSONAGEM - Nessa novela não falta bom dinheiro: o total dos rendimentos de assaltos a bancos sem solução já alcançou mais de 1 milhão de cruzeiros novos. Não estão ausentes também especulações sobre o que o vilão vai fazer com o dinheiro. Ao ser apresentado à imprensa, depois de mostrar partes de seu corpo para provar que não tinha sido torturado, Paulo César - de dezenove anos, antes apontado como segundarista da Faculdade Nacional de Direito e depois como aluno de um cursinho preparatório aos vestibulares de Medicina - afirmou: "Marighela disse que o dinheiro era para o movimento, mas não posso garantir que ele não vá usá-lo para outras coisas". No fim da semana passada, a novela ganhou mais um excelente personagem: o ex-Deputado Federal fluminense Tenório Cavalcanti, famoso dono da famosa metralhadora "Lurdinha" e também de um apartamento em São Paulo que Marighela teria usado para suas reuniões.

CONFUSÃO NO ROTEIRO - Alguns críticos mais exigentes notam porém certas confusões no roteiro da novela - confusões sempre presentes em investigações de grande amplitude, até a solução final. Algumas perguntas: depois do assalto ao carro pagador do Instituto de Previdência do Estado da Guanabara, o dinheiro foi dividido pelos assaltantes em um Volks azul que se encontrou com o Volks creme do estudante, onde estaria Marighela, na Rua Trairi, no Rio, como disse Paulo César? Ou pelos assaltantes de um Volks verde que se encontrou com uma Kombi cinza e verde na Avenida Henrique de Meio, também no Rio, como testemunhou um garoto? Na hora do assalto, Paulo Cesar estaria no Curso Miguel Couto, como diz sua tia? Ou estaria no subúrbio em que se realizou o assalto, como ele diz? Foi Marighela ferido num tiroteio em Aparecida do Norte; está em Rio Verde, em Goiás; em Rio Verde, em São Paulo; em Rio Verde, no Mato Grosso; ou no Paraguai, ou ainda no Rio de Janeiro, como julga o chefe da Polícia Federal de São Paulo, General Sílvio Correia de Andrade?

AS PISTAS CERTAS - Ao lado dessas confusões há porém pontos incontroversos. Estão presas 39 pessoas, está decretada a prisão preventiva de Carlos Marighela e também foram apresentados à Imprensa os três membros de uma célula comunista de um subúrbio carioca - dois sargentos cassados, João Lucas Alves e José Roriz e um engenheiro do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, José Roberto Monteiro. Há a grande mobilização policial em todo o País. E há finalmente certos documentos atribuídos a Carlos Marighela que tornam bastante possível, se não a participação direta em assaltos a bancos e atos de terror, pelo menos a sua inspiração e direção. Segundo os documentos assinados por Marighela - artigos da revista clandestina "Problemas", seus livros "Por que Resisti à Prisão" e "A Luta Interna do Partido", as cartas que escreveu de Havana, onde compareceu no ano passado à reunião da Organização Latino-Americana de Solidariedade -, a luta pelo socialismo no Brasil passa por vários estágios.

Em primeiro lugar seria necessário formar "bases", grupos de comunistas não filiados a partidos. Depois se passaria à "arrecadação de fundos", mas os documentos não se referem explicitamente a assaltos a bancos. Em seguida viriam "atos para chamar a atenção" e depois "atos espetaculares", que abririam caminho para as guerrilhas. Segundo autoridades policiais, a primeira fase já foi encerrada, o que teria sido demonstrado pelos ataques ao Governador Sodré no comício de Primeiro de Maio em São Paulo. Marighela estaria agora na segunda fase, já na passagem para a terceira.
UM LÍDER RÁPIDO - Não é fácil fazer nome nas esquerdas radicais e clandestinas, inexpressivas nacionalmente e divididas em facções rivais que se combatem umas às outras com dureza. 0 nome de Luís Carlos Prestes foi crescendo durante dezenas de anos, a partir da década de 30, e foi só ao fim da Segunda Guerra que chegou a aparecer como nome nacional. Entre o início de carreira e o auge no Governo Goulart, Brizola passou anos procurando aparecer. Carlos Marighela, porém, tornou-se um nome nacional em apenas um ano e hoje é o líder mais importante das pouco importantes esquerdas clandestinas, a ponto de todas as polícias federais e estaduais estarem a sua procura. Até agosto do ano passado, quando rompeu com a direção de Prestes e foi a Havana, Marighela, embora tivesse trinta anos de militância comunista, sempre procurava aparecer bem menos que os grandes nomes do Partido, como um dirigente discreto e eficiente. De lá para cá, Marighela ficou falado embora apenas nos meios reduzidos e superdivididos das esquerdas comunistas. A caçada policial vem dar ao antigo deputado federal e ao homem três vezes ferido no peito ao ser preso num cinema da Tijuca em abril de 1964 - foi solto dois meses depois - o prestígio que trinta anos de trabalho político nas fábricas e nos campos nunca lhe deram.

UM COMUNISTA EXEMPLAR - "Destro em tomar da pena e encher várias laudas de afirmações superficiais", diz Osvaldo Peralva, antigo comunista, hoje diretor do "Correio da Manhã", do Rio, sobre seu antigo companheiro. Descendente de italianos e com vários negros na família, Carlos Marighela, nascido em Salvador em 1911, foi estudante de Engenharia e no terceiro ano abandonou os estudos pela agitação. Entrou muito cedo para o Partido Comunista e foi preso várias vezes, a primeira delas em 1936. Já então lia, "para descansar os miolos", Dostoiévski e Graciliano Ramos, um de seus grandes amigos. Seu romance com Clara, sua mulher durante quase trinta anos, começou num baile de Primeiro de Maio, em Salvador, onde a conheceu. Mais tarde, depois de a polícia ter dado uma batida anticomunista no mesmo bairro popular em que havia sido realizado o baile, Carlos e Clara uniram-se, comprometendo-se à "dedicação integral à causa", como ele gosta de lembrar.

HOMEM SEM FILHOS - Durante vários anos, no intervalo das prisões, Carlos e Clara tentaram mas não conseguiram ter filhos. A mulher fez vários tratamentos médicos, mas nenhum adiantou. Desde essa época é que Marighela começou a gostar de conversar com crianças, ainda que desconhecidas. Como fez nas praias do Rio, até há poucos dias. Aos amigos, nos bares de Copacabana, contava: "Com o correr dos anos eu e Clara nos conformamos. Nossos descendentes não seriam mais nossos filhos, mas os filhos de todos os explorados do mundo. Para eles é que daríamos nosso amor". 0 que não impediu que Carlos Marighela tivesse tido um filho com outra. Seu filho é hoje estudante na Bahia e, como o pai, também carrega a marca das lutas contra a polícia. 0 jovem Marighela foi ferido este ano, num distúrbio estudantil em Salvador. 0 jovem MarigheIa de trinta anos atrás passou o Estado Novo entre as prisões e a organização de greves. Até que Getúlio caiu, o PC ficou legal e Marighela saía da cadeia para entrar na Câmara como deputado.
LOURO, ATREVIDO, MULATO - Ao abrir-se a Constituinte de 1946, o segundo orador inscrito protestou contra a escolha do presidente da Assembléia, "membro, nesta casa de eleitos, de um corpo estranho, o Tribunal de Justiça, para o qual foi nomeado pela ditadura de Getúlio Vargas". Jornalistas perguntavam quem era "aquele mulato louro atrevido" que assim começava sua ação parlamentar. Era um deputado baiano, CarIos Marighela - "homem comum em inteligência e atuação", lembra o gaúcho Raul Pila, solteirão de 77 anos, líder do extinto Partido Libertador. Memória mais simpática tem um paulista de oitenta anos, Aureliano Leite, da ex-UDN, presidente do Instituto Histórico e Geográfico: "Marighela era muito combativo e falava bem. Com seus colegas comunistas, foi um dos grandes autores do capítulo sobre liberdades e garantias individuais, apoiados por nós, liberais".

UM DEPUTADO BAIANO - Até ser cassado, Marighela continuou falando quase todos os dias: 195 discursos em menos de dois anos. Quase todos de protesto. Por exemplo: contra a presença na cidadezinha mineira de Bocaiúva de cientistas americanos que iam ver um eclipse da Lua, contra a proibição da exportação de arroz em ano de safra bem maior do que o consumo (achava que os preços no mercado interno não iriam cair). Eleito quarto-secretário da mesa da Constituinte, "foi um dos secretários mais eficientes que já passaram por esta casa", diz Janduhy Carneiro, paraibano do MDB, deputado federal há 22 anos.

DAS POLTRONAS AOS CORREDORES - Na bancada comunista da Bahia - dois deputados - havia uma divisão do trabalho. Carlos Marighela fazia barulho por entre as poltronas macias do plenário do Palácio Tiradentes, enquanto Jorge Amado batia papos tranqüilos no sossego das comissões. Em 1947, Marighela continuava seus protestos, contra o fechamento da Juventude Comunista, contra o rompimento de relações diplomáticas com a União Soviética, contra a extinção do Partido Comunista cujos deputados passaram a ser considerados sem partido - e, finalmente, em seus últimos dias de deputado, contra a cassação de seu mandato e de todos os outros comunistas. Em novembro de 1947, no último discurso, MarigheIa falou aos berros, jogou papéis para o alto e contra o plenário, protestou até ficar rouco. Seus gritos foram tão inúteis quanto as 330 emendas - a maioria escritas por ele - apresentadas pelos comunistas ao projeto de cassação. E Marighela saiu dos salões brilhantes da Câmara para os quartos escuros das reuniões clandestinas.

CONTRA A INDISCIPLINA - Foi então que Marighela foi mandado pelo Partido a São Paulo, o centro de suas ações nos últimos vinte anos. Conta Osvaldo Peralva que Diógenes de Arruda Câmara, pernambucano, principal líder do Partido depois de Prestes, começou a "quebrar a crista" de Marighela, que considerava um possível rival. Arruda ridicularizou Carlos junto à direção, por ter ido a São Paulo disfarçado de piIoto, "como um basbaque". Submetendo-se a críticas e autocríticas, não mais disputando com Arruda, Marighela foi subindo no Partido.

CONTRA OS BUROCRATAS - Foi só depois da Revolução de 1964 que Marighela começou a chamar de burocratas os dirigentes do PC. Guarda ainda porém muitas idéias de sua antiga militância. Chama a linha chinesa de "o tal PC do Brasil", o qual critica com violência. Não tem nenhuma simpatia "pelos anarquistas e trotskistas e membros da Ação Popular, meia dúzia de classes médias apavorada com a ascensão do proletariado". Há três anos começou a duvidar da eficiência das teses do Partido, segundo as quais era necessária "urna ,aliança com a burguesia nacional" e não era necessária "a luta armada, antes de esgotar os meios pacíficos". MarigheIa aderiu às teses de Fidel Castro, Guevara e Debray: era necessária a guerrilha, era necessário "lutar contra a burguesia", além de contra o "imperialismo" e o "latifúndio". No Congresso do PC do ano passado, a ala de Prestes teve maioria e Marighela foi expulso do Partido, mantendo porém muita influência, principalmente no Sul do País.

TELEFONES BRANCOS - Antes Marighela tinha ido a Havana, onde conseguiu três quartos luxuosos, com telefones brancos, no Habana Libre, ex-Hilton Havana Hotel. Lá também conseguiu ficar emocionado ao conversar com Fidel Castro. E conseguiu um cargo no Secretariado Permanente da OLAS. Pouco mais de um ano depois, seu nome virou manchete. Onde andará Carlos Marighela? Estará treinando guerrilha, quase sexagenário, em algum ponto no interior do País? Muitas autoridades acham que isso é possível, até mesmo provável. Por isso, a caça sem trégua, a mobilização permanente contra o homem acusado de assaltar bancos para conseguir fundos que sustentem a guerrilha. Um Dom Quixote, dizem as esquerdas mais bem comportadas. Diz Osvaldo Peralva: "0 mais completo stalinista brasileiro é Marighela, inteiramente frio, duro, obstinado e fisicamente muito corajoso. É cordial no trato e pitoresco na linguagem, um verdadeiro baiano. Apesar de não ter completado seus estudos de engenharia, Marighela foi aluno brilhante e numa ocasião fez uma prova na Escola Politécnica em versos".

AS LEITURAS E OS ASSALTOS - Continua Peralva: "Marighela leu mais Stálin do que qualquer outro autor comunista, mesmo Marx. Engels e Lênin ele os leu mas através das interpretações stalinistas. Tem condições para organizar ações como um assalto, mas todo o barulho de agora pode ser cortina de fumaça para assaltados de direitistas". Para as autoridades, Marighela é um perigoso subversivo. Para Luís Carlos Prestes, não passa de "um patriota com métodos errados". E, enquanto a polícia não prende Marighela, Prestes propõe outro meio de arranjar finanças para a subversão. Seu jornal clandestino "Voz Operária" anunciou em outubro o "Mês Nacional de Finanças", em que serão dados prêmios aos militantes que mais dinheiro conseguirem para o Partido. Os prêmios vão desde entrevistas a serem publicadas no jornalzinho mal impresso até viagens aos Estados Unidos, "para ver de perto a luta dos negros".


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